A vida na Beira fervilha entre hotéis lotados na baixa da cidade, obras de reparação e centros de deslocados que rodeiam a zona urbana, três semanas após o ciclone Idai.
Estima-se que mais de mil pessoas tenham voado para a Beira onde estão agora envolvidas nas equipas de assistência humanitária das mais diversas organizações, nacionais e estrangeiras, segundo dados do Governo.
Adicionalmente, muitas destas organizações têm deslocado dirigentes e respetivas comitivas ao terreno, o que faz com que os hotéis e outros alojamentos da Beira estejam cheios, pelo menos a avaliar pela visita da Lusa a sete unidades na baixa e Ponta Gea - apenas uma suíte presidencial estava livre na noite de segunda-feira.
Um empresário conta que a faturação não significa lucro, porque muitos espaços sofreram avultados prejuízos e, para o provar, mostra alguns dos seus quartos em que o teto voou e as caixilharias tombaram.
Por outro lado, como a eletricidade ainda não foi reposta em todas as ruas, há unidades a funcionar com recurso a geradores, o que implica um custo acrescido com gasóleo, justifica.
Devido à falta de alojamento, uma parte do pessoal envolvido na assistência à população montou tendas para se acomodar.
Muitos residentes, em bairros de lata ou de cimento, enfrentam prejuízos elevados, tal como fazem os empresários e as histórias de solidariedade povoam as conversas.
As contas far-se-ão no final, mas vários negócios ganham dinâmica com obras de reparação e com uma clientela inusitada, que requer hotelaria, restauração, aluguer de viaturas e outros equipamentos, tradução e apoio logístico - ofícios que poucos podem oferecer.
O que está à vista é que as ruas da Beira fervilham de vida, regressaram à normalidade, com trânsito caótico, passeios tomados por vendedores informais e com a crónica decadência da urbe acentuada agora por telhados arrancados, vidros partidos, chapas retorcidas e paredes mais antigas tombadas.
Marcas visíveis também nalguns dos edifícios mais emblemáticos, mas que continuam de pé.
E a maioria das marcas está a ser tratada, sendo raro o bairro onde não se encontrem grupos de pessoas com ferramentas e escadas nas mãos, ao som de marteladas.
Uma das coisas que mais se vê na rua é lenha, resultado das centenas de árvores que caíram na noite de vendaval e que foram sendo cortadas para abrir caminho.
"Muita gente vai agradecer ter essa lenha para fazer carvão", comenta um motorista, ao contornar um monte dela, à beira da estrada - agradecer a lenha e as chapas, que voaram e que hão de servir para erguer novas casas, acrescenta.
À hora de almoço ou jantar, para quem pode (uma minoria) já é possível voltar a vários dos restaurantes do costume, da baixa à zona do Estoril, passando pela Ponta Gea, e sob ar condicionado e entre os pratos do dia (por exemplo, feijoada ou ‘jaquinzinhos’), assistir ao noticiário de um canal português que atualiza o número de mortos em Moçambique, como se fosse lá longe.
Mas é ali à porta e a maioria ainda sofre.
As autoridades contabilizam cerca de 600 mortos em Moçambique devido ao ciclone Idai e às cheias, havendo 131.000 pessoas assistidas em centros de acomodação, 80% no distrito de Beira, que precisam de ajuda para ter comida e um teto enquanto não conseguem regressar para as suas terras.
O ciclone tirou-lhes as casas, de construção precária, mas feitas a custo.
E tirou-lhes a ‘machamba' (horta) de onde tudo nascia, o alimento, sementes, o rendimento e o sentido da vida, centrada na agricultura de subsistência agora enterrada sob a lama arrastada pelas cheias.
Hoje, umas tendas dão abrigo a deslocados, outras servem como enfermaria.
No centro de saúde de Macurungo, a poucos minutos da baixa de Beira, o lixo continua a amontoar-se à porta, como sempre, mas desta vez há um hospital de campanha de Cruz Vermelha montado lá dentro, ao lado de um centro de tratamento de cólera de diferentes organizações de saúde - uma zona demarcada, isolada.
As famílias aproximam-se da vedação para pedir informações sobre o estado de saúde dos familiares ao pessoal que circula do lado de dentro com máscara.
"Vim saber da minha sogra. Ficou mal, com vómitos e diarreia, suspeita-se que seja cólera", diz António Jorge à Lusa, depois de perguntar a um enfermeiro se ela precisa de comida.
O ciclone trouxe estragos e provocou um aumento dos casos de cólera, que todos os anos surge na época das chuvas em Moçambique.
Desta vez, as autoridades já registaram mais de duas mil infeções no centro do país, desde o ciclone, mas os parceiros de saúde, encabeçados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), sob coordenação do Governo moçambicano, têm conseguido conter o surto, curando 94% dos casos.
Conter as doenças e matar a fome é prioridade das autoridades e organizações envolvidas na assistência pós-ciclone, evitando um segundo pesadelo.
Alberto Miguel, carpinteiro, alimenta com barrotes de madeira os sonhos de quem quer voltar a ter a casa de pé no bairro de lata da Praia Nova, na orla da baixa de Maputo, junto ao mar.
"Não sou daqui, mas chamaram-me porque há trabalho para fazer", porque as zonas precárias foram as mais destruídas pelo ciclone, com madeiras e chapas feitas numa amálgama que ele ajuda a desfazer.
O mesmo material não há de resistir a uma nova tempestade e Alberto Miguel diz que todos sabem disso, mas "fazer o quê?".
LUSA – 05.04.2019