TESTEMUNHO DO PADRE MICHAEL LAPSLEY NO LIVRO SOBRE PADRE MATEUS GWENJERE(traduzido do inglês por Lawe Laweki)
No dia em que cheguei à África do Sul deixei de ser um ser humano. Tornei-me um homem branco. Cada aspecto da minha vida foi decidido pela cor da minha pele e não pela minha humanidade comum... a casa de banho que eu poderia usar, o restaurante que eu poderia frequentar, o bairro onde eu poderia residir, a universidade onde eu poderia estudar e...e... e...
Para mim, unir-me à luta de libertação foi querer recuperar a minha própria humanidade em solidariedade com os negros que lutavam pelos seus direitos humanos básicos. Também percebi que um profeta individual não acabaria com o apartheid e nem ameaçaria a sobrevivência do regime. O que ameaçou o regime foi a acção disciplinada de muitos que actuaram em conjunto para trazer o fim do apartheid.
Eu também distinguiria entre a escolha de um padre se juntar a um movimento de libertação nacional em vez de se juntar a um partido político. Além disso, no contexto sul-africano, a luta foi igualmente uma luta teológica porque o estado do apartheid justificava-se teologicamente. Mesmo na última constituição branca, o regime reivindicava orientação divina. Concluí também que os objectivos do ANC (Congresso Nacional Africano) de estabelecer uma sociedade democrática não racista e não sexista eram consistentes com os valores do Evangelho.
O meu calcanhar de Aquiles era de que eu era um pacifista comprometido. Foi o assassinato de alunos em 1976 pela polícia que fez com que o meu pacifismo desmoronasse. Fiquei convencido de que, no nosso contexto e com a nossa história, a luta armada se tinha tornado moralmente legítima e justificável.
Eu considerava o regime do apartheid como moralmente ilegítimo e o ANC como representante moralmente legítimo do povo da África do Sul. Ao tornar-me um membro do ANC, entendi que estava a assumir a cidadania na África do Sul, para a qual ainda estávamos lutando. Em Setembro de 1976, fui expulso da África do Sul e fui viver para Lesoto. Foi lá que me juntei ao ANC e fui capelão do movimento nos 16 anos que se seguiram.
Durante vários anos antes disso, eu vivia com guardas armados na minha casa como consequência de estar numa lista de procurados do governo sul-africano. Embora por vezes eu sentisse medo, a minha oração era de que as minhas acções fossem determinadas pelas minhas crenças e convicções mais profundas, e não pelo meu medo.
Quando a carta-bomba explodiu, eu soube imediatamente que o regime do apartheid me tinha apanhado. Mas também fiquei com a sensação de que Deus estava comigo. A carta-bomba enviada para mim deveria ter-me matado, mas eu estava vivo. Eles perderam e eu ganhei...Durante o resto da minha vida fui-me apropriando dessa vitória.
Através das orações e do amor das pessoas no mundo, percebi que, se estivesse cheio de ódio e amargura e desejo de vingança, seria vítima para sempre. Eles não teriam conseguido matar o corpo, mas teriam matado a alma. Todavia, perder as mãos é como perder um ente querido. Embora não estando muito preocupado com isto, a tristeza é uma parte permanente da minha vida.
No nosso Instituto, concentramo-nos nos efeitos psicológicos, emocionais e espirituais do passado. No entanto, isso deve ser visto como complementar à acção política, social e económica. Como nação, enfrentamos desafios gigantescos de pobreza, desemprego, desigualdade e corrupção. Além disso, somos a sociedade mais desigual do mundo em termos de distribuição de riqueza. Neste contexto, não podemos estar em paz connosco mesmos.
Existe igualmente muita evidência que sugere que ainda somos uma nação traumatizada. A Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC) deu-nos uma vantagem gigantesca para o que precisa de ser uma jornada intergeracional de cura nacional. Uma vez terminada a comissão, não assumimos suficientemente o trabalho da Comissão da Verdade e Reconciliação ... algo que é responsabilidade de todos os cidadãos e de todos os sectores da sociedade.
Eu acho que existe uma consciência renovada na nação de que, na verdade, somos um povo danificado e ferido. Esse reconhecimento cria novas possibilidades de cura. O Presidente Ramaphosa articulou de forma muito clara a ferida da nação, o que ajuda a colocar a cura da nação de volta na agenda nacional.
Para curar, qualquer país precisa, antes de mais nada, de admitir que está ferido. A questão que todos nós precisamos de fazer em todos os contextos, é como o passado da nação nos afectou e nos infectou. A tentação é procurar enterrar e esquecer o passado, o que nunca funcionou em nenhum lugar do mundo. A evidência que existe é que as feridas não cicatrizadas do passado voltam a afectar-nos, seja como indivíduos, comunidades ou nações. Precisamos de nos lembrar do passado sem sermos prisioneiros do mesmo.
Em diferentes partes do mundo, as pessoas frequentemente perguntam se precisam de uma Comissão da Verdade e Reconciliação. A grande questão é: como lidamos com o passado? É desejável que, tanto quanto possível, haja reconhecimento e um pedido de desculpas onde quer que a ordem moral tenha sido transgredida.
Mas também, na medida do humanamente possível, toda a nação precisa de ter uma visão clara do que aconteceu no passado, em particular o que foi feito secretamente. Descobertas sobre o que realmente aconteceu muitas vezes continuam através das gerações, e mudam a forma como as pessoas vêem o que aconteceu e como se vêem uns aos outros.
Embora não possa haver equivalência moral entre o colonialismo e aqueles que lutaram contra ele, isso não significa que os libertadores não transgrediram a ordem moral, mesmo enquanto lutavam pela liberdade. E, claro, houve novas feridas criadas desde a independência que precisam de cura.
Quando se trata de lidar com o passado, é importante que possamos abordar não apenas a dimensão política, social e económica, mas também a psicológica, emocional e espiritual, da nação e dos indivíduos. Muitas vezes, o veneno não está no que pensamos sobre o passado, mas no que sentimos sobre o passado. Por essa razão, é importante que as pessoas sejam capazes de se expressar emocionalmente e percorrer uma jornada de desintoxicação.
Curar uma nação de um passado de guerra e conflito é intergeracional. Temos que perguntar-nos o que podemos fazer na nossa geração. Em sociedades pós-conflito, muitas vezes há uma escalada de violência sexual e doméstica baseada em género. É importante para nós vermos a ligação entre o que aconteceu no espaço público e o que acontece no espaço privado.
A cura de memórias também é sobre quebrar a cadeia que transforma vítimas em culpados. Ao olharmos para o espelho como nações e indivíduos, podemos confrontar-nos e iniciar jornadas de cura.
Padre Michael Lapsley em Viena, na Áustria, em 2015 - assinando o seu livro “Redeeming the Past” ("Resgatando o Passado"). Fonte: Dr. Josef Pampalk
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