Estávamos em 1962, vivíamos na cidade de Tete, Moçambique, numa casa que os meus pais compraram a um antigo residente senhor Santos, com a ajuda desinteressada e por empréstimo do valor necessário para a sua compra, vinte mil escudos, ajudou-os o senhor Emílio Mendes Cerejo. Fica mesmo à beirinha do Zambeze na sua margem direita, em frente tem a ilha, Kanhimbe.
Aí começamos a viver em 1956 até que fomos visitados pela grande cheia de Fevereiro em 1958, ficámos fora de casa cerca de um mês, com um metro e vinte centímetros de água. Os prejuízos foram elevados. Valeu-nos a solidariedade da família Gonçalves dos serviços de veterinária, acolheu-nos em sua casa durante esse período. O meu pai encontrava-se em convalescência, pois tinha sido operado a uma apendicite aguda pelo Dr. António Joaquim Paulino, que passadas mais de uma dezena de anos, veio a ser o Ministro da Saúde e Assuntos Sociais no Governo de Transição de Moçambique que tomou posse em 20 de Setembro de 1974.
Voltando a 1962, tinha feito o primeiro ano do liceu como repetente, tive média alta. Como prémio os meus pais deixaram-me ir passar férias no mato.
Fui com o senhor Caria, amigo do meu pai, desde a tropa em Portugal, algures em 1947/48. O senhor Caria chegado entretanto a Tete, trabalhou como empregado de comércio e na SAT, Sociedade Algodoeira de Tete. Em 1962 o senhor Caria estava a iniciar a abertura de uma nova loja sua, construída a pau e pique no Chimuto, próxima da Chiúta. A construção a pau e pique era feita com as paredes de uma estrutura entrelaçada de paus, depois maticada ( coberta com argamassa tipo terra barrenta) e no topo coberta com capim.
A viagem de férias iniciou-se a partir de casa dos meus pais, o meu pai levou-nos, a mim e ao senhor Caria, até ao local onde ficava o sítio do batelão, também conhecido pelo local do reboque e dos "gasolinas" num destes "gasolinas", barco de madeira com motor fora de bordo, atravessámos o rio Zambeze e chegámos à margem esquerda: Matundo. O sítio do reboque, donde saia o batelão e os gasolinas, por vezes variava, conforme o rio Zambeze enchia ou vazava, tempo da seca ou das chuvas.
Fomos percorrendo a estrada até à Casula, passámos pela nyoka-nyoka (estrada em zig - zag, com curvas e contra curvas muito acentuadas, na língua local nyungwe, significa cobra). Chegados à Casula, parámos. Aqui comeu-se papaia, manga verde com sal, ananás e bananas de várias qualidades. Lembro-me de umas muito saborosas, muito aromáticas, de casca lilás e no seu interior uma côr creme acastanhado claro. Como imaginarão em 1962 as estradas ( picadas ) em Tete não eram ainda asfaltadas, ao serem em terra batida o rodado do camião fartava-se de tremer, com a ondulação constante. O camião transportava mercadoria muito variada para a loja de pau a pique do Chimuto, como por exemplo: pilhas, lanternas, lâminas, pneus, câmaras de ar e raios para as bicicletas, capulanas, chiria ( uma espécie de pano cru), sal, açúcar, doces ( eram compridos, multicores, tinham o aspecto e tamanho de um lápis muito grosso, nunca mais vi destes doces) e um garrafão de vinte litros de vinho clarete arealva, zelosamente guardado pelo ajudante de motorista António. À noite, ainda na Casula, dormimos na cabine do camião, pois partiríamos de madrugada em direcção ao Chimuto.
Aqui começa a história.
Durante o percurso entre a Casula e o Chimuto, em plena picada, o camião tem uma avaria: o cubo de uma das rodas traseiras parte-se. Estaríamos a uma dezena de quilómetros do Chimuto. Nesta época ainda não havia energia eléctrica por estas paragens, telefone, nem rádio de comunicação. Partiu o ajudante António a pé, encontrou alguém de mota que nos transportou até ao Chimuto. O camião ficou retido até vir a peça, ser reparado e transportar as mercadorias para a loja de pau a pique do senhor Caria no Chimuto.
Quatro dias se passaram no Chimuto à espera do camião. No Chimuto não havia água potável, não havia fogão de espécie alguma, nem geleira ( aqui vocês chamam frigorífico ), a cama era o milho a granel com uma manta ou cobertor em cima, portas e janelas só lá tinham o sítio. Recordo-me em algumas noites termos os ratos a passear por cima de nós.
O dia a dia era passado na loja e à caça de galinhas do mato ( cangas, galinhas da Índia ou fracas), coelhos bravos e gazelas. Melhorava os meu conhecimentos de Nyungwe e Nyanja. Como os dias passavam rápidos: sem cinema, sem televisão, sem rádio, sem jornais, sem supermercados, sem cafés, restaurantes e esplanadas, a conviver com outros meninos que não falavam português. Aprendi a cozer à máquina de costura a pedal, ainda me magoei num dedo, nada de grave. A nossa alimentação era tudo grelhado na brasa com sal e piripiri. Não, não me esqueci da bebida. Passámos os quatro dias no mato.
No último dia com a chegada do camião foi também o dia da nossa partida para o Vuende, próximo do Furancungo, onde o senhor Caria tinha outra loja, esta de alvenaria. Antes da nossa partida, o senhor Caria pega no garrafão de vinte litros de vinho clarete arealva, vira-o com o gargalo para baixo e nem uma gota pingou de vinho, exclama: "Oh Augusto, bebemos os dois cinco litros de vinho por dia e estava quente!".
Augusto Macedo Pinto, Advogado, [email protected]
VERTICAL - 17.08.2005
PS: Recorde aqui os comentários então colocados
https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/08/quatro_dias_no_.html