Documentário que retrata a história de uma jovem moçambicana que optou por seguir o Islão discute o fundamentalismo religioso. No domingo (29.09), o filme foi exibido no Afrika Film Festival em Colónia, na Alemanha.
O documentário "Entre eu e Deus", dirigido pela realizadora Yara Costa, mostra a trajetória de Karen, uma jovem moçambicana que se converteu ao islamismo fundamentalista na Ilha de Moçambique, um local onde essa vertente da religião era pouco comum, no norte do país. O filme fez parte da programação do Afrika Film Festival em Colónia, na Alemanha.
"A Karen, a personagem do filme, eu já a conheço desde dos seus cinco anos de idade. E eu acompanhei um pouco o trajeto dela da infância e adolescência e vi essa mudança no que diz respeito à escolha de uma vida mais religiosa, a seguir alguns preceitos de uma versão da religião islâmica bastante conservadora e fundamentalista que não era comum naquela região", conta Yara Costa em entrevista à DW África.
Contexto histórico
O filme começa a explicar o contexto histórico: o Islão teria chegado a Moçambique por volta do século VIII. Lá, fundiu-se com a cultura macua, transformando-se "num islão com características africanas". Só agora, recentemente, o Islão fundamentalista passou a crescer e ganhar adeptos - principalmente jovens - no país.
"A primeira chegada desse Islão já vem da época colonial, mas a proliferação de mesquitas que pregam este novo Islão, eu diria que, nos últimos, talvez seis anos. Por exemplo, as mulheres começaram a vestir-se com burcas e hijabs não há mais de dez anos. Isso é uma coisa absolutamente nova, não existia isso", avança a realizadora.
Yara Costa diz que resolveu tornar público o testemunho de Karen, devido ao visível crescimento do fundamentalismo religioso nos últimos anos em Moçambique.
"Nos últimos, talvez, cinco anos, observa-se uma tendência das pessoas religiosas, tanto islâmicas como cristãs, de um apego muito grande à religião e de a religião passar a ditar a forma de vida, como o que comer, como vestir, como andar, o que dizer. Essa escolha é visível e eu achei interessante discutir isso a partir de uma história pessoal e única que eu conhecia bem".
Contradições, conflitos e discriminação
A proposta do filme é mostrar a escolha de uma jovem, suas contradições internas e também seus conflitos numa sociedade que discrimina sua escolha religiosa.
"Uma escolha religiosa é uma coisa absolutamente pessoal e não deveria ser, em princípio, julgada por ninguém. Mas o que que acontece quando essa escolha é percebida num contexto mais alargado, da associação à violência, atos terroristas? É um desafio ser muçulmano hoje em dia em Moçambique. [É difícil] exibir e afirmar essa escolha perante à sociedade em que vivemos, que é muito anti-islâmica também, apesar de ser um país historicamente com uma forte presença dessa religião", explica Yara.
O filme "Entre eu e Deus" foi lançado em 2018 em Moçambique, mas só agora chega à Europa. "Pra mim, era importante por causa do que estava acontecer em Moçambique. Por causa da situação no norte [com os ataques armados], houve uma necessidade de discutir o filme naquele contexto. Quero que todos o vejam, pois trata de assuntos muito urgentes neste momento".
Ataques armados
A onda de ataques armados no norte de Moçambique serviu como pano de fundo para o filme. "Depois que as filmagens terminaram, uma semana talvez, tivemos notícias dos primeiros ataques no norte do país que foram vastamente divulgados pelos media como ataques associados ao radicalismo islâmico. Então, o filme acabou por ter esse pano de fundo social".
Para Yara Costa, a solução para o problema é complexa, tendo em vista que não se sabe ao certo os motivos e quem realmente está por trás dos ataques, mas ela acredita que esse tipo de situação também acontece num terreno fértil, onde os jovens se tornam vulneráveis por falta de alternativas.
"Qual é o futuro dos jovens hoje em Mocímboa da Praia ou em Palma? Talvez criando alternativas para coisas que os desviem do dinheiro mais fácil, imediato, que, se calhar, pode ser obtido através desse tipo de ações violentas. Essas pessoas não são militares ou gente altamente treinada, que vem de fora. São pessoas dali, que sempre viveram ali, e com carências, pelo menos materiais, muito grandes. E então, se alguma coisa é feita no sentido de suprir essas carências, e de dar uma chance a estes jovens, talvez o crime não seria uma aposta pra eles", afirma.
DW - 30.09.2019