Por Aurélio Furdela
Sobre eleições em Moçambique, creio que nenhum acto equiparável a um simples estalar de dedos fará com que sejam transparentes, livres e justas. Por mera questão de lotaria da vida, quando os moçambicanos foram chamados pela primeira vez às urnas, em 1994, estava eu em idade de votar, e por engajamento cívico listei-me como Membro de Mesa de Voto.
Transcorridos 25 anos, ainda equiparo o escrutínio a um jogo de futebol, com lugar em noite de chuva tempestuosa, jogando os intervenientes em terreno lamacento, escorregadio e com receio de serem atingidos por um raio na cabeça.
Não é novidade para ninguém, Moçambique revive, de eleição em eleição, uma paz ameaçada pelo retorno à guerra, com registos intermitentes de hostilidades militares. Da memória mais recente, em 2014, com a divulgação dos resultados das eleições gerais, o maior partido da oposição em Moçambique, a Resistência Nacional Moçambicana, RENAMO, queixou-se outra vez de fraude eleitoral e, em protesto, boicotou a tomada de posse dos seus membros nas assembleias provinciais e dos 89 deputados no Parlamento, seguindo-se a isso toda uma peripécia belicista que não vem agora ao caso.
O facto de não termos olhado desde o início, 1994, para as eleições como um processo evolutivo, e assim valermo-nos de cada experiência eleitoral como capital de aprendizado para a sofisticação da nossa prática democrática, conduziu à asfixia de toda a possibilidade futura de um escrutínio insuspeito.
Quero aqui acreditar que a grande armadilha em que os partidos da oposição se meteram, foi a ideia de alcance imediato do poder, esquecendo-se de que as instituições ou melhor, as mentalidades outrora confiadas à condução dos destinos do País eram as mesmas que há pouco conduziam o Partido-Estado, em tempo de partido único, por alongamento geracional podem ser árbitros nas subsequentes disputas políticas. As hostilidades militares não permitem a transformação dessas mentalidades, pois ninguém acredita numa democracia assente no cano de uma AKM. Não seria um simples Acordo de Roma que estirparia o complexo problema de mentalidades, ou a aprovação de sucessivas leis.
Quero acreditar que o problema da democracia em Moçambique não advém de único partido, ou apenas dos partidos políticos, pois tudo deriva de onde viemos, um processo histórico de mentalidades absolutistas que iria cimentar-se até no seio dos partidos da oposição, das organizações da sociedade civil, das universidades, da instituições de arte e cultura, tudo em torno do umbigo próprio e nada pelo País. Se algum dia vier a provar-se efectivamente alguma fraude, e apontar-se o partido no poder como quem se agarra ao poder a qualquer custo, é de se perguntar: Quem no seio dos partidos da oposição não é vitalício, na sua esfera de exercício de poder? Chamaria atenção para a trajectoria de lideraça dos dois maiores partidos da oposição, e um extraparlamentar. Afonso Dhlakama, após a morte de Andre Matsangaíssa, em 1979, tornou-se Presidente da Renamo, cargo que conservou até a morte, quase quatro décadas depois, com que energia? Davis Simango é Presidente, desde a criação do MDM, 2009, e jamais presenciámos abertura para uma transparente, livre e justa eleição de um novo presidente. O PIMO de Yacub Sibinde, idem.
As organizações da sociedade civil, afinam no mesmo diapasão. Caso um desses estivesse no poder, com essa mentalidade, garantir-nos-iam eleições, justas e transparentes? Se fosse esse o interesse, à Renamo, por exemplo, não teria faltado uma visão atenta ao futuro, a médio e longos prazos. Ao gerar contestações em tom grave desde 1994, a RENAMO acaba por dar um tiro no próprio pé, a sangrar até a data.
A transição da mentalidade totalitarista da época monopartidária para uma pluripartidária, de plena democracia que almejamos, não será garantida pelo triunfo das tensões político-militares. O processo de democratização nacional clama, desde a realização das primeiras eleições gerais, por uma gradual transição, politicamente negociada entre as diferentes alas progressistas da classe política da RENAMO e do Partido no poder, entre outros. As tensões que sempre se impõem, a cada período pós eleitoral, minam o nosso crescimento em todos os sentidos, mesmo na academia, que se pretende um centro do saber por excelência, aponta-se muita massa intelectual amorfa, que em nada contribui para a produção do conhecimento. Aliás, um cientista social que não escreve, equipara-se a um alfabetizado que não lê. Não será com a ajuda de tais intelectuais da televisão em falácias “político-científicas” que atingiremos um pensamento pró-democrático.
E se a RENAMO reclama agora que a polícia favorece o partido no poder, não deve se esquecer de que também contribuiu para que esta condição prevaleça até a data. Naturalmente, a RENAMO, ao ameaçar guerra, conduziu para o reforço da ideia de que ela era inimiga da paz, espectro que possivelmente ter-se-ia dissipado gradualmente, através de uma luta política no quadro das instituições alcançadas a partir da assinatura dos Acordos Gerais de Paz. Por outro lado, se o partido no poder, FRELIMO, no quadro da tensão político-militar, faz o reforço das instituições à sua imagem, presta-se a ocupar o lugar de vilão, sempre suspeito. E, se por um lado alguém é acusado de falsificar editais, o outro é da falsificação de outro tipo de documentos, é um jogo em campo lamacento, escorregadio, onde quem perde pensa que o vencedor fez batota maior que a sua.
Outrossim, os membros da Comunidade Internacional deviam, por seu turno, procurar trazer à memória o facto de a democracia nos seus respectivos países, ter obedecido a um crescimento gradual. Aliás, a própria União Europeia, em 2004, viveu de Silvio Berlusconi a acusação a esquerda de fraude nas eleições europeias.
Sorte dos países que começaram a democratização a partir de eleição de órgãos de pequena monta, transitando essa experiência por anos a fio, até o alcance do funcionamento das eleições como acontece na actualidade. Nunca vi os partidos políticos a baterem-se nos bairros para a eleição do Chefe do Quarteirão ou Secretário do Bairro, facto que dinamizaria a cultura democrática junto do cidadão comum, e com esta atitude prestariam melhor acção na transformação das mentalidades.
A Comunidade internacional devia, provavelmente ter buscado a consciencialização dos partidos da oposição, para a necessidade de uma longa caminhada, desde 1994, e hoje não se falaria assim do uso do património do Estado a favor deste ou daquele partido. Por exemplo, no Brasil, consta que o poder local concentrava-se na figura do coronel, que lançava mão do seu poder económico para conquistar e manter seu prestígio político, coagindo apadrinhados a votar no candidato por ele indicado. O período foi marcado pela prática exercida pelas mesas eleitorais, que sabotava o apuramento dos votos, produzindo actas falsas, ressuscitando eleitores mortos, entre outros actos fraudulentos.
Apesar de contar com essa experiência e outras da sua longa idade democrática, a democracia no Brasil, ainda tem instituições judiciais capturadas a favor de alas políticas, pensemos aqui no caso Lula da Silva.
A concluir, Moçambique precisa de alcançar, por mais que seja em ritmo acelerado, a maturação da democracia, acreditando no crescimento através da superação política e não pela remoção de obstáculos pela via armada. A tentativa de remoção destes obstáculos pela via armada, possivelmente aproximou ainda mais, nos últimos anos, às instituições do Estado ao Partido no poder, Frelimo, fazendo, provavelmente, por outro lado, a RENAMO e os restantes partidos da oposição sentirem-se párias de um processo que se pretende único na transmissão legítima do poder, o resto, a julgar pelo imediatismo, seria por um indesejável blitzkrieg. Assim, em Moçambique, face às actuais condições de pobreza intelectual, política e económica, não se pode falar simplesmente de eleições fraudulentas. A grande fraude é tentar induzir o povo a lutar por interesses particulares de um líder partidário, ou partido, quando nem os do País cabem nalguns manifestos eleitorais falaciosos que há pouco testemunhámos.
O PAÍS – 25.10.2019