Por Renato Caldeira
O desporto em Moçambique no tempo colonial, início da década 60, era um poderoso veículo de afirmação social e rácica. Nas zonas com fronteira ou proximidade com a África do Sul ou a Rodésia, como Lourenço Marques, Sofala e Manica, o racismo era mais visível.
A estractificação sentia-se nos clubes e nas modalidades, com ligeiras variantes em cada um dos distritos, hoje províncias. Basquetebol, ténis, golfe, automobilismo e outros desportos, considerados de elite, eram para “preto ver e branco praticar”. As cores misturavam-se no futebol e atletismo, mas mesmo aí, em certos clubes, era necessário “ter a cor adequada”.
Tudo se tornava mais visível no boxe, onde até ao início da década 70, não eram permitidos combates de negros contra brancos. A gestão, relativamente aos mestiços, era feita consoante a tez, mais clara ou mais escura.
CAMISOLA DO SPORTING NUM PRETO...
Vou caracterizar o futebol na Zambézia, a partir da minha vivência, com memórias que guardo desde a meninice.
Recuemos a Quelimane, cerca de 60 anos.
Ferroviário e Sporting eram grandes rivais. “Batiam-se” forte e feio. E porque ambos tinham equipas fortes, criou-se uma enorme rivalidade, ao estilo “ora-agora-ganhas-tu-ora agora-ganho-eu”.
Mas havia uma particularidade: é que os leões, até então, como clube ligado à polícia, não admitiam jogadores negros. Já nos locomotivas, o anormal era o enquadramento de um branco.
Até que um dia...
O campo do Sporting registou uma anormal enchente. Motivo? Para lá da rivalidade, pela primeira vez um negro iria vestir a camisola “leonina”: chamava-se Rolando e vinha da então Rodésia. O motivo da curiosidade centrava-se na forma como o verde-listrado dos leões, “assentaria” no corpo de um negro. Imagine-se! Parece ficção, mas não é!
Foi uma data na história, pois assim quebrou-se uma tradição, que contrariava os mais radicais dirigentes leoninos que, com alguma dificuldade, acabaram por “engolir” essa exigência dos técnicos e dos sócios não racistas e liberais.
E foi a partir daí que a integração de desequilibradores negros como Fakir Amichande, Vasco Patrício e outros, passou a ser algo normal.
Quase sem se aperceberem, os zambezianos acabavam de dar um importante pontapé na discriminação, a partir do desporto. Não só se quebrou uma regra “contra-natura”, como o leque de escolhas para o plantel leonino, passou a ser muito mais vasto.
TALENTO VENCEU SEGREGAÇÃO
Para além do Sporting, o futebol na urbe quelimanense era dominado pelo Ferroviário, que escolhia os melhores jovens da cidade e lhes proporcionava emprego. Seguia-se o Benfica, enquadrando um extracto social intermédio e a Associação Africana, dominada pelos mestiços e que priorizava os “mulatos de segunda e os cafre-metade”. Negro puro, teria que ser muito talentoso...
Desta forma, as disputas transportavam toda a carga de diferenças, com as vitórias ou derrotas a representarem oportunidades para afirmação ou humilhação de uns para com os outros.
UM CONTÁGIO POSITIVO
Ano após ano, a referida integração no futebol, foi “contaminando” outros sectores. A natação, na piscina municipal, os cafés e restaurantes de referência, aos poucos, passaram a ver como normal o enquadramento de não brancos.
Mas voltando ao futebol, há que referir que no principal campeonato suburbano – no campo da Sagrada Família - os clubes passaram também a integrar futebolistas brancos e os chamados “mulatos de primeira”.
É que, naquele tempo, nas peladas suburbanas, a ideia prevalecente era a de que “o futebol não é para os brancos”. Fazia-se uma cedência ao filho do cantineiro, pois era o único que possuía uma bola de borracha, que lhe garantia lugar cativo em qualquer das equipas.
Na verdade, pela realização permanente das peladas de “muda aos cinco e acaba aos dez” nas zonas suburbanas, a ascensão dos mais talentosos da “temba” aos clubes da cidade, rapidamente passou a algo natural.
NA CAPITAL, O XILUNGUINE...
E em Lourenço Marques? No Sporting, clube dos polícias, as integrações nos princípios da década 70, tinham o seu quê de cosméticas. Porém, dois clubes desde a sua raiz se posicionaram como anti-racistas: Desportivo de LM e 1.º de Maio, conhecidos como Nações Unidas, por integrarem desde logo jogadores negros, mestiços, brancos, asiáticos, chineses e de outras raças, sem quaisquer reservas. O que “mandava” era o talento. Exemplos? Coluna, Eusébio, Hilário, Po Wing, Madala Gaíza, Maurício, Satar e Armando Manhiça, alguns, que deles depois de “exportados”, passaram a ser dos melhores do espaço português de então.
Está claro que à medida que a contestação à opressão colonial crescia, o exemplo de uma prática desportiva cada vez mais multi-racial ia sendo assumido e enquadrado no processo mais vasto de libertação das pessoas e da sua dignidade, como seres que aspiravam a igualdade de pensamento e oportunidades.
É verdade! Sem ter recorrido a armas, o desporto foi um importante factor de combate ao racismo e de aproximação entre os cidadãos.
O PAÍS – 31.10.2019