EDITORIAL
Há um País à parte na província de Cabo Delgado, onde a constituição está materialmente suspensa, onde não há Estado nem Governo. As pessoas sobrevivem à sorte da arbitrariedade enquanto o azar não lhes bate a porta e lhes não serve um prato brutalmente frio e cheio de crueldade que decepa os membros aos sortudos e arranca as cabeças aos mais azarados.
Esses moçambicanos que são mortos ao todo santo dia, feito animais desconhecem a causa que lhes faz morrer, tal como desconhecem de onde virá a mão que lhe livra desse inferno proporcionado por homens iguais. O único pecado que se lhes pode imputar é o facto de os seus pais os terem nascido numa terra com recursos petrolíferos agora objecto de disputa entre as máfias internacionais com a conivência de uns senhores que sentados em gabinetes com temperatura condicionada em Maputo, subscrevem esses planos de dizimar os seus próprios irmãos.
Vai daí que na capital Maputo onde se tomam as decisões isso nem é conversa. Os órgãos de comunicação social do sector público que sobrevivem dos impostos dos moçambicanos incluindo os de Cabo Delgado nem se quer se dão ao trabalho de informar uma única linha sobre o que se passa em Cabo Delgado. Há um pacto criminoso de silêncio desde as autoridades com a cumplicidade dos órgãos de comunicação social.
Nisto tudo há um País a parte em que cabeças de homens mulheres e crianças são decepadas numa cruzada insana de terrorismo.
É preciso ser muito ingénuo para pensar que o grupo terrorista que está a praticar esses actos surgiu de uma casualidade e pratica tais actos como mero exercício de acefálico de divertimento. Não. O povo tem inteligência suficiente para perceber que está a ser vítima de um cruzamento de agendas contrapostas no âmbito da exploração dos recursos petrolíferos.
Para já este martirizado povo que foi escolhido para ser a colateral desta disputa das máfias internacionais que tem sócios nacionais, nunca precisou do petróleo que ali abunda para sobreviver.
Eles e os seus antepassados viveram da agricultura, da pesca e da pastorícia. Apesarem de terem uma legítima autoridade para exigir mais e melhor, nunca precisaram de muito para viver.
Hoje estão votados a uma indignidade tal de terem de fugir de noite a noite, na incerteza da própria vida, não sabendo quando é que lhes chega a vez de serem esquartejados. E no meio à falta de qualquer tipo de informação acordam cercados de milícias estrangeiras que ninguém sabe de onde vêm e que interesses defendem.
Tal como não se sabe com que termos de referências essas milícias combatem fazendo a devida destrinça entre os cidadãos bons de Cabo Delgado e os cidadãos maus ligados ao terror.
Nesta salada toda, a acção por omissão do Estado é deveras preocupantes numa República que tem uma constituição e instituições.
O silêncio da Assembleia da República perante tão grave matéria também não deixa de ser preocupante. O silêncio dos deputados eleitos pelo círculo eleitoral de Cabo Delgado é simplesmente criminoso. É estranho que esses deputados representem os habitantes de Cabo Delgado e se estejam nas tintas agora que essas mesmas almas a quem dizem representar estejam a ser esquartejados e eles no conforto da almofada do silêncio sepulcral.
Estes ataques duram mais de dois anos. É tempo suficiente para no mínimo haver uma informação de Estado e credível sobre o que se está a passar em Cabo Delgado. As trapalhadas pelas quais o próprios Chefe de Estado se está a meter não ajudam a sua própria imagem nisso. Começaram com a responsabilização de um cidadão sul-africano que morreu sob custódia das judicial sem nunca ter sido julgado. Depois seguiu-se uma conversa de uns tais empresários radicados na Beira, numa declaração inflamada para não dizer pouco responsável do próprio Chefe de Estado. Tudo dito e feito no maior levianismo e enquanto isso Cabo delgado continua a ferro e fogo.
De todas as formas, o Chefe de Estado tem vir a público, não em números de conversa fiada, mas em aparição séria para dizer aos moçambicanos na sua qualidade de comandante em Chefe sobre o que se está a passar em Cabo Delgado.
Deve explicar aos moçambicanos a ratio que existe por detrás da contratação da milícia estrangeira, e sobre os seus honorários e sob que termos e condições esse negócio foi feito.
Perante tudo isto, se há uma incerteza que estes nossos compatriotas estão a viver, não é a incerteza da morte, é a incerteza sobre qual o tipo de acto bárbaro que lhes tirará a vida. A par dessa incerteza, há uma certeza: que todo este destino cruel é uma guerra com a qual os moçambicanos nada têm a ver, porque esta acção sanguinária é o produto de um programa que ultrapassa as aspirações de um povo que já nasceu na miséria e está a morrer sem direito a um sepulcro, mesmo que seja uma simples cova.
A dignidade negada a um povo ostracizado é agora agravada com o impedimento de realizar um simples funeral, pois ao homem e à mulher é negado o direito de chorar e enterrar o seu filho, pai, mãe ou irmão, porque tem de fugir no momento a seguir, para salvar a sua própria vida.
Quem acode aos nossos compatriotas de Cabo Delgado, enquanto isso ainda é possível? Até quando vai continuar a escorrer sangue em Cabo Delgado? Até quando os nossos compatriotas que vivem em Cabo Delgado continuarão a ser apenas números estatísticos para descrever tragédias? O que é que esses nossos compatriotas têm de tão mau para que o Governo se furte ao dever de proteger as suas vidas?
Quem é que explica este alheamento do Governo perante cidadãos que estão a ser dizimados como animais? Deixar que o assunto de Cabo Delgado seja resolvido pela Polícia e pelo Exército localizado nessa parcela do território de Moçambique é encarar Cabo Delgado como se fosse território alheio. Mas mais grave do que isso é esperar que essa situação se resolva por si mesma.
CANAL DE MOÇAMBIQUE – 11.12.2019