Um ano depois da detenção de Manuel Chang, o que mudou em Moçambique? Que aspetos positivos e negativos o caso trouxe para o país? Especialistas apresentam os desafios a que o sistema, no seu todo, está sujeito.
A 29 de dezembro de 2018 Manuel Chang foi detido no aeroporto internacional de Joanesburgo, na África do Sul, quando estava a caminho do Dubai. A detenção aconteceu no âmbito de um mandato de captura emitida pela justiça dos Estados Unidos da América (EUA), que acusa o ex-ministro das Finanças de Moçambique de envolvimento em casos de crimes financeiros, relacionados às dívidas ocultas moçambicanas.
Este pode ser visto como o segundo marco no caso das dívidas ocultas, avaliadas em cerca de dois mil milhões de euros, depois da elaboração e divulgação da auditoria da Kroll, documento que cita os nomes dos supostos envolvidos, embora de forma codificada. Esta detenção impulsionou alguma mudança no sistema de justiça moçambicano há muito descredibilizado?
Para o jurista António Frangoulis, "não trouxe nada de novo, no sentido positivo, do tipo a nossa justiça acordou ou terá moralisado". "Mas", continua o especialista, "trouxe um elemento novo no sentido de que o pouco que a nossa justiça é para mostrar algum serviço e não ficar mal na fotografia, ou melhor, para não ficar pior. E aumentou toda a descredibilidade da nossa justiça".
Nem as ações da Procuradoria-Geral da República (PGR), instiuição vista como apática e partidarizada, que culminaram com a detenção de "intocáveis" próximos ao regime, e nem a retirada da imunidade a Manuel Chang elevaram a reputação do sistema de justiça. Frangoulis entende que a descrença em relação à justiça moçambicana no seio da sociedade atingiu os píncaros, a partir deste caso.
Mais consciência cidadã?
O reboliço a volta do caso terá tornado a sociedade moçambicana mais consciente dos seus direitos e por isso mais participativa? O sociólogo Hostêncio Lopes opina que "sim, existe um certo [exercício] de cidadania".
"Infelizmente não tem sido muito fácil, porque o espaço político e social, em particular da cidadania, nalgum momento há um fechamento. Portanto, as pessoas querem se manifestar, mas são barradas de forma violenta. Então, vão vendo as coisas acontecerem de foram praticamente passiva", argumenta o sociólogo.
Com mais ou menos justiça ou com menos ou mais consciência de cidadania, o certo é que as portas dos mercados internacionais e os cordões à bolsa dos doadores fecharam-se com o caso das dívidas, deixando Moçambique financeiramente e economicamente no sufoco. E a menção do nome do ex-ministro das Finanças num escândalo de corrupção veio baixar ainda mais a cotação do país no mercado internacional.
O economista Muzila Nhansal diz que estes factos deixou o país "um bocadinho apreensivo sobre como os negócios do Estado são ou eram geridos: o não respeito pelas leis, o desrespeito pelos princípios éticos e depois a situação em que o pais ficou [por causa do caso]".
"Do ponto de vista sócioeconomico em si é o que o país está a ver", acrescenta o economista, que conitnua: "houve a crise [económica] e isso teve grandes custos para o país ao nível da sua imagem e reputação e ao nível da sua sociedade também. A desconfiança das instituições, os cidadãos sentiram-se traídos e hoje clamam por uma responsabilização".
O papel da sociedade civil
Mas houve setores que não cruzaram os braços, a sociedade civil moçambicana é uma delas. Entrou com processos fora de Moçambique com vista as devidas responsabilizações de outros envolvidos e no caso particular de Chang ofereceu-se até para ser amigo do tribunal, pretendendo fornecer subsídios para melhor condução do caso, o que foi negado pela justiça sul-africana.
No entanto, as organizações não governamentais nacionais prosseguem firmes e o facto é realçado por António Frangoulis: "Então, é o Governo, o partido, o chefe do Governo, todos eles a serem julgados politicamente pela sociedade civil, porque o Estado é a sociedade politicamente organizada. Então, é a sociedade que praticamente está a julgar o seu representante fora dos tribunais, porque já não confia nos tribunais, porque se confiasse teria se calado, à espera que viesse o veredito do tribunal. Mas os cidadãos não querem o veredito de cá, porque já vem completamente inquinado pela grande suspeita".
Receptores de dinheiro
E sob o ponto de vista político, o envolvimento do ex-ministro e mais tarde a menção do nome do Presidente da República e do partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), como parte dos receptores do dinheiro da corrupção, queimaram o "filme" dos próprios e do atual Governo. Mas não tanto a ponto de perderem as eleições gerais de outubro deste ano, pelo contrário ganharam com números expressivos.
Mas Frangoulis entende que o caso pede ações mais enérgicas: "Se já estavam chamuscados o partido, o Governo e o próprio chefe de Estado e ao mesmo tempo presidente desse partido, com as revelações de Jean Boustani saíram pura e simplesmente chamuscadíssimos. Já vieram até alguns políticos dizer que ele [o Presidente da República] já não tem condições de Governar, não tem legitimidade. Mas a verdade é uma: aquelas revelações [de Jean Boustani] já justificavam sentar-se e ouvir o que é que se diz. Não se pode calar pura e simplemente, porque Jean Boustani diz claramente que o partido recebeu dinheiro e que quem recebeu esse dinheiro é o chefe do partido. Não estou a ver onde ainda sobra uma reserva de moralidade tanto no partido que sustenta o Governo, no Governo e nem na pessoa que sustenta essas instituições", afirma o jurista António Frangoulis, citando as declarações de Jean Boustani à justiça norte-americana.
DW – 28.12.2019