Há um tipo de comportamento humano que consiste em teimosamente recusar uma determinada proposta, para no fim a aceitar, mas ao mesmo tempo moldá-la de tal forma que a sua implementação se torne problemática, para depois com isso provar que a recusa inicial era justificada.
Parece ser o caso do actual processo de descentralização, cujo desenho e implementação mais se assemelham a uma anedota, do que a algo seriamente pensado para contribuir para o progresso da nação moçambicana.
E não é algo surpreendente. Não é segredo que a descentralização foi imposta, a contragosto, como moeda de troca para se alcançar uma paz com a Renamo.
Mas com a sua astúcia, a Frelimo moldou a legislação sobre a descentralização de tal forma que se anulasse toda a essência do que a Renamo inicialmente pretendia com o processo.
A confusão que reina entre os limites da governação provincial descentralizada e o papel dos secretários de estado provinciais não pode ser reduzida a uma interpretação adversa da legislação. Trata-se, na verdade, de um problema político propositadamente criado para impedir que a descentralização seja implantada em Moçambique como um modelo mais eficaz de uma governação baseada na participação popular.
Uma descentralização bem estruturada permite uma maior distribuição do poder entre os vários sectores da sociedade e promove a inclusão, factores fundamentais para o aumento da participação democrática e reforço da legitimidade do Estado.
A dispersão organizada do poder público promove a estabilidade, dado que no processo de formulação de políticas e tomada de decisões há o envolvimento de um maior número de participantes, estes que serão os mesmos a fiscalizar a materialização dessas decisões. Pode se dizer que as assembleias provinciais executam esse papel, mas se elas fiscalizam a acção de um governador despido de quaisquer poderes, é o mesmo que se não existissem.
O que se pretendia era que as populações, ao nível das respectivas províncias, tivessem voz na tomada de decisões sobre a governação ao seu nível, sem com isso querer significar o esvaziar do princípio da unicidade do Estado, ou que a soberania deste fosse posta a retalho. É possível descentralizar e conferir uma maior autonomia às províncias, sem com isso pôr em causa a unicidade do Estado. Isso pode ser feito através de uma clara delimitação daquelas áreas que não devem ser sujeitas à governação descentralizada, as quais podem ser administradas directamente pelo poder central, através das suas respectivas instituições de tutela.
Para se conseguir este modelo de descentralização, em que há áreas da exclusiva responsabilidade do poder central, não é necessário um Secretário de Estado (ou seja qual for a outra designação) a disputar espaço, protagonismo e recursos com um governador eleito pela população local. A actual opção desvirtua por completo o conceito de descentralização como uma forma de governação assente na devolução do poder político para as populações das províncias. É confusa, e conduz à duplicação de esforços e recursos, e até certo ponto uma humilhação aos governadores provinciais, que vêm as suas funções serem usurpadas pelos Secretários de Estado.
Quando se diz que há áreas representativas da soberania do Estado, será que se pretende dizer que há outros sectores na esfera da actuação do Estado que não cabem na definição clássica do que é soberania? Ou que os governadores eleitos não seriam capazes de compreender os limites do âmbito da sua jurisdição?
Na verdade, se o acordo de paz de 6 de Agosto visava pôr fim ao conflito entre o governo e a Renamo, através da adopção de um verdadeiro sistema de descentralização do poder político, esse objectivo não foi alcançado nas actuais condições. Na essência, foi uma simulação de descentralização; um exercício de dar com uma mão o que se retira com a outra. Os Secretários de Estado substituíram os governadores, e estes foram atirados para uma espécie de terra de ninguém, com a alucinação de um poder que na prática não possuem.
Mas o episódio do ensaio da descentralização deve também servir de lição para a Renamo, quanto aos limites do uso da violência como meio para a obtenção de fins políticos. A pressão para pôr fim ao conflito, muitas vezes com prazos apertados visando cumprir um calendário eleitoral isento de quaisquer garantias de isenção, levou a Renamo a descuidar-se dos detalhes da agenda que lhe estava a ser imposta. A Renamo deve aprender a mobilizar a opinião pública e servir-se da pressão popular para a obtenção de ganhos colectivos e úteis para o país a longo prazo. Para se usar uma linguagem desportiva, desta vez ela perdeu o jogo.
É preciso reconhecer que as forças defensoras do sistema de comando e controlo impuseram-se para literalmente sabotar o processo de descentralização, e torna-lo na caricatura que ele hoje representa. Muitas vezes, reagimos anedoticamente ao que está a acontecer, mas nessa atitude ignoramos a tragédia que se abateu sobre um modelo de governação que se tivesse sido bem sucedido, contribuiria imensamente para conferir maior credibilidade e legitimidade à governação descentralizada, com resultados positivos para o desenvolvimento da democracia em Moçambique.
SAVANA – 14.02.2020