Este trabalho trata da Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) – grupo armado que combateu o regime da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) de 1977 até 1992 e hoje é o principal partido da oposição –, tal como aparece nos Cadernos da Gorongosa.
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Em 28 de agosto de 1985, o quartel-general da Renamo, situado na Casa Banana, foi atacado pelas forças zimbabweanas e do governo moçambicano. A Casa Banana estava situada a leste da serra da Gorongosa, no extremo norte do parque nacional do mesmo nome, cerca de 22 km a leste da localidade de Vunduzi, a norte do rio Nhadué.1 A Renamo sabia de antemão do ataque e
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1 Stephen A. Emerson indica como situação «entre a localidade de Cavalo e o monte Panda, a noroeste da aldeia de Canganetole»: The Battle for Mozambique: The Frelimo–Renamo Struggle, 1977–1992 (West Midlands: Helion and Company Limited, 2014), 136. Cavalo está a menos de 1 km de Vinduzi. Canganitore (Canganetole no livro de S. Emerson) tinha sido a pista de aterragem da Casa Banana. Segundo Peter Stiff, as tropas zimbabwenas lideraram toda a operação: «[…] elite troops of Zimbabwe’s 1st Parachute Batallion captured Renamo’s Gorongoza HQ on 28 August 1984 [sic: 1985]. This attack had been made possible by the ZNA taking over responsibility for offensive operations in the Manica, Sofala and Tete provinces from the FPLM. This was additional to their responsibilities in the Beira corridor […] It is ironic that the reconnaissance of the base and the successful assault afterwards was controlled by colonel Dudley Coventry […]
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«Não Somos Bandidos»
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informou os seus grupos locais para que não fossem apanhados de surpresa.2 A base fora evacuada, tendo ficado uma parte do material bélico mais pesado que tinha sido apreendido ao governo.3 Apesar da declaração de Samora Machel, presidente da República Popular de Moçambique e do partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), dizendo «quebrámos a espinha dorsal da cobra», esta não foi uma derrota militar importante. Aliás, um jornalista estrangeiro baseado em Moçambique, bastante favorável à Frelimo, retorquiu: «o problema é que a cobra não tem espinha dorsal».4 A Casa Banana foi reocupada alguns meses depois pela Renamo.
No entanto, para além do material pesado que haviam deixado, ficou também uma parte dos seus arquivos, que os serviços de segurança do governo moçambicano se apressaram a estudar.5 Com efeito, poucos meses depois do Acordo de Não-Agressão e Boa Vizinhança,
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He had originally established the base for Renamo in the old Rhodesian days, so he knew it well. Before the assault, he briefed FPLM commanders at Chimoio on Renamo’s history» [Peter Stiff, The Silent War: South African Recce Operations 1969-1994 (Alberton: Galago, 1999), 379-380]. Agradeço a Éric Morier-Genoud, que chamou a minha atenção para essas páginas.
2 Entrevista com o brigadeiro-general Inácio Faque Ferraria, Beira, outubro de 2014. O próprio A. Dhlakama contou a sua versão da tomada da Casa Banana, reproduzida em Jaime Nogueira Pinto, Jogos Africanos (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008), 226-228.
3 Emerson, The Battle for Mozambique…
4 Em inglês, estranhamente, o episódio foi traduzido assim: «We have broken the back of the snake, but the tail will still thrash around» [Paul Fauvet e Marcelo Mosse, Carlos Cardoso: Telling the Truth in Mozambique (Cidade do Cabo, 2003), 138]. Emerson utilizou a mesma tradução: «We have broken the back of the snake […] The tail will still thrash around for a while. Now we are pursuing the head of the snake» (The Battle for Mozambique…, 140).
5 Não era a primeira vez que a Renamo perdia «papéis». Isso já acontecera em junho de 1980, quando a base de Sitatonga foi assaltada pelas forças do governo (Sitatonga foi a segunda base central da Renamo no interior de Moçambique, depois da queda da base de Satungira, na Gorongosa, em 1979) (v. a entrevista de A. Dhlakama por Jaime Nogueira Pinto, Jogos Africanos, 227-228). O bloguista pro-Renamo Unay Cambuma também descreveu essa batalha no artigo «A batalha de Satitoga-2» [sic], http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2014/02/abatalha-de-satitoga-2.html. Também, aquando da tomada da base de Garagua, em 4 de dezembro de 1981, papéis que já foram divulgados pelo governo, conhecidos como Documentos de Garagua [cf. Anders Nilson, Paz na Nossa Época. Para Uma Compreensão Holística de Conflitos na Sociedade Mundial (Maputo, ISRI e Góteborg: Padrigu, 2001), 59].
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Introdução
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o chamado Acordo de Nkomati, assinado em 4 de outubro de 1984 e que, em princípio, previa que o governo moçambicano deixasse de apoiar o African National Congress em troca de o governo sul-africano deixar de apoiar a Renamo, esses documentos iam permitir comprovar que o segundo continuava clandestinamente, mas ativamente, a apoiar a Renamo com material bélico e não bélico.
Rapidamente o governo publicou excertos dos doravante conhecidos como Cadernos da Gorongosa, isto é, peças de arquivos da Renamo, onde aparecia, sem dúvida alguma, a presença da África do Sul na vida do grupo rebelde. Houve duas edições sucessivas, sob o título de Documentos da Gorongosa, a segunda ampliada e bilingue, incluindo uma parte intitulada «1984. Diário/Desk Diary», além dos «Caderno 2» e «Caderno 3», já incluídos na 1.ª edição. De imediato, Afonso Dhlakama, comandante-chefe da Renamo, alegou que eram documentos falsos forjados pelo SNASP.6 De certa maneira, ele tinha razão: como o título mesmo indicava,7 eram «extratos», mas extratos cuidadosamente escolhidos com o fim único de comprovar a presença sul-africana. A «concentração», nesses excertos, de tudo quanto evocava a África do Sul criava assim a impressão de que esta tinha uma presença quase diária na vida da guerrilha, que não era mais do que o «braço regional armado do apartheid», isto é, um fenómeno não político, mas de tipo mercenário – daí a expressão «bandidos armados», ou «BAs», usada desde 1980.8
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6 SNASP: Serviço Nacional de Ação e Segurança Popular, a temida polícia política do regime da Frelimo. Alex Vines, autor de um dos primeiros estudos aprofundados sobre a Renamo, não se apercebeu de que os Documentos da Gorongosa publicados pelo governo, a que ele chama os Vaz diaries, não eram mais do que uma seleção («Vaz», de José Francisco Vaz, segundo A. Vines – talvez houvesse confusão com Joaquim Vaz, secretário de A. Dhlakama) [Alex Vines, Renamo. From Terrorism to Democracy in Mozambique? (Amsterdão: Centre for Southern African Studies – Londres: James Currey, 1996), 24-25 (1.ª ed., 1991)].
7 Documentos da Gorongosa (extractos)/(extracts) Gorongosa Documentos ([Maputo], [1985]), 108 folhas (216 páginas), 2.ª ed. Preferi manter o nome Cadernos da Gorongosa porque é corrente e para os distinguir dos excertos publicados pelo governo.
8 Antes da independência do Zimbabwe, o governo da Frelimo denunciava diretamente as incursões das forças rodesianas em território moçambicano, ou falava de «atividades contrarrevolucionárias», o que era um qualificativo político. Como a independência do Zimbabwe devia levar ao fim dessas atividades, o que não aconteceu, pelo contrário, o qualificativo de «bandidos armados» foi doravante utilizado para negar qualquer teor político à rebelião.
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Veja aqui a Introdução na íntegra: Download Não Somos Bandidos» A vida diária de uma guerrilha
de direita - a Renamo na época do Acordo de Nkomati (1983-1985). CAHEN Michel Cahen
NOTA: Estas são as primeiras páginas desta obra essencial para a História de Moçambique.
Pode ser adquirida em https://www.ics.ulisboa.pt/en/node/104277