Marcelino dos Santos, uma das figuras mais influentes e duradouras da Frente de Libertação de Moçambique e do seu sucedâneo "político", e que nasceu no Lumbo (um lugarejo em frente à Ilha de Moçambique) em 20 de Maio de 1929, faleceu hoje (11 de Fevereiro de 2020), em Maputo, com 90 anos de idade.
Desde os primórdios das movimentações nacionalistas com o fim de pôr um fim ao regime colonial português em Moçambique, nos anos 40 do Século XX, Marcelino dos Santos foi, de dentro do grupo de pessoas presentes na altura, a meu ver, a pessoa mais central e crucial do processo que culminou com a formação de uma frente unida e que, a partir do então Tanganica, iniciou, no final de 1964, uma guerrilha contra as autoridades coloniais portuguesas, de que resultou posteriorente a independência de Moçambique.
Se há um fio condutor em tudo o que aconteceu primeiro à Frelimo e depois ao nascente país, para melhor e para pior, esse fio condutor foi Marcelino dos Santos.
Que, infelizmente, era tão nacionalista como comunista, o que, com o apoio de Samora e de Chissano (e de mais meia dúzia de guerrilheiros notáveis, e ainda - principalmente, acho - de uns heróicos 3-5 mil moçambicanos, anónimos hoje, que foram quem de facto andou no mato a arrisacar as vidas, aos tiros e a colocar minas terrestres durante dez anos), orientados pelos chineses de Mao e demais países comunistas da época, sucederam em forçar uma independência a martelo, mudando o país nascente de uma ditadura colonial de partido único empenhada em adiar a independência política, para uma infame ditadura comunista de partido único, empenhada em libertar os vizinhos do apartheid.
A revolta em 1974 dos militares portugueses, comandados por um lourenço-marquino comunista, veio mesmo a tempo para a Frelimo, pois Marcelo Caetano na altura preparava-se para despachar as colónias até 1980, pois que já davam mais prejuízo que o que ele achava que o seu país, sob um manto de "autonomia soberana". Em Lourenço Marques, ao contrário do que todos hoje parecem julgar, rigorosamente ninguém estava preparado para nada, muito menos os brancos. Como aliás se viu.
Em 1975, perante a impotente, obdediente e excitada maralha, reunida em comícios infindáveis, pouco depois de assumir o cargo de líder incontestado, e para que não houvessem dúvidas, o carismático Samora proclamou que, afinal, a coisa não tinha acabado: afinal, a coisa apenas tinha começado.
E repetia vezes sem conta, nos seus comícios obrigatórios sem fim: A Luta Continua. A Luta Continua. A Luta Continua. A Luta Continua.
E assim a luta continuou, agora para todos, no púlpito, Samora, secundado por Marcelino dos Santos.
O resultado foram mais vinte anos de guerra civil e com os vizinhos, que mataram mais que um milhão de cidadãos moçambicanos e destruiram o pouco que havia depois da auto-destruição ao estilo pol-potista dos primeiros anos após 1975, tida como medida necessária para se criar o Novo Moçambique. Todos a ferro e fogo, solidários na miséria e sujeitos às investidas da Snasp e à chambocadas repetidas por causa de tudo e de nada, ajudados depois pelos rodesianos e pelos sul-africanos.
Antes e após 1975, e praticamente até esta data, Marcelino dos Santos, temido e celebrado como o verdadeiro mandarim do regime, permaneceu uma peça-chave na Frelimo, que governou em ditadura até 1994, após o que, já num contexto constitucional multipartidário, concebido antes de Roma principalmente para ficar bem na fotografia e agradar as potências envolvidas, continuou a governar com uma maioria parlamentar e presidencial, operando à superfície como um partido, na prática o efectivo detentor da totalidade do poder político e com uma captura total de todas as instituições do estado moçambicano, incluindo a máquina eleitoral e os tribunais. Que usou.
Mas no seu seio, malgrado a fachada "democrática", a máquina não mudou quase nada. Tudo ainda é decidido à porta fechada lá naquela sala de reuniões no único prédiozito no meio da Somershield.
É a mesma máquina que, por alturas de 1975, e nos anos seguintes, decapitou e mandou decapitar toda e qualquer oposição ou voz minimamente dissonante aos seus ditames. Em que Marcelino assinou por baixo no infame decreto que supostamente legalizou os assassinatos de, entre outros, o Reverendo Simango e sua mulher e a Dra. Simeão.
E, de facto, a guerra realmente não acabou em 1994. Parou, apenas, por pura exaustão e por acordo entre as partes, que nos anos seguintes mantiveram a mesma animosidade com que se degladiaram anteriormente, a Frelimo sempre com a faca e o queijo na mão, o lado contrário a rosnar com as armas. Foi um mero cessar-fogo, as partes incapazes de se reconciliarem. Os conflitos seguiram-se. O tempo foi passando.
Recentemente, o país viu-se envolvido em mais um escândalo em que 2 mil milhões de dólares em empréstimos fraudulentos foram usados para alguma da sua elite política, ao mais alto nível do Estado, se obterem benefícios de forma corrupta. Uns foram presos, outros continuam a usufruir do seu pecúlio. Predominantemente, com corajosas poucas excepções, a sociedade moçambicana assobia para o lado, com medo dos esquadrões da morte e dos sucessivos G-40s. A imprensa manda palpites muito ténues e não há oposição. Lá fora, eufemisticamente, refere-se ao regime como uma "democracia musculada" a resvalar para o autoritarismo puro e duro.
Entretanto velho, doente, alheado, desgastado, nos últimos anos, mais ainda passando or uma inédita euforia pelas catorzinhas (nisso de alguma forma ofendendo a alguma dignidade da sua companheira, a nada menos monumental Pamela dos Santos, que, justamente, o abandonou), Marcelino criou uma fundação, escreveu uns poemas e viveu pacatamente os seus últimos dias na mansão que lhe deram na Somershield, na esquina ao pé da antiga Sociedade de Estudos. Adoptou filhos. O seu marxismo impenitente foi pouco discretamente desacreditado e posto pelos seus acólitos na gaveta, respeitosamente, para não o ofender. Ele quase tudo ignorou. Ficou puro nas suas convicções, na sua lapela a nação que ajudou a criar.
O que tanto mais de notável é se se considerar que ele era um mulato culto num ambiente e numa organização em que, desde o primeiro momento, não negros cultos eram, comprovadamente, desconsiderados e rotulados de quase traidores só pelo mero facto de não serem pretos. Mas Marcelino foi sempre eficaz na sua dança, mortíferamente assim e sempre absolutamente fiel à causa da Frelimo e especialmente aos seus líderes (a excepção singular e gritante sendo o Dr. Mondlane, claro, que em 1968 já era um miscast na organização que supostamente liderava), sendo por isso sucessivamente recompensado com o estatuto de Intocável do Regime, desempenhando cargos da maior confiança e responsabilidade - sempre a um passo do poder máximo, especialmente no caso de Samora, o cavalo em que apostou em 1968 e 1969, com estrondoso sucesso. Dizem que Samora não ligava a isso das raças (duvido mas enfim) e parece-me que, para poder governar, ele acharia que tinha que ir buscar apoio e talentos onde os encontrasse. Se há um exemplo disso, ele é, de facto, Marcelino dos Santos.
E Marcelino tinha a vantagem de saber, sem ninguém ter que lhe dizer, que o seu lugar era sempre o de segundo atrás do líder. O que sempre soube fazer, de forma exímia.
A Eminência Parda do regime.
Economicamente, Moçambique hoje produz camarões, vende alguma electricidade aos vizinhos a partir da agora moçambicana Cabora Bassa, na Matola refina escória de alumínio que vem da Ásia e que a Mozal exporta logo de seguida, exporta algum carvão que vem de Tete e está em estágio de iniciar a exportação de gás natural, que se espera que traga alguma receita fiscal- e encha os bolsos pelo menos de alguns (empregos, nem vê-los, apesar da vigorosa e inútil ginástica reguladora da Vitória Diogo). A maior parte da população, que já se cifra em mais que 30 milhões de almas, sobrevive da agricultura de subsistência, do pequeno comércio e da prestação de serviços nas principais cidades e respectivas periferias. Os chineses, os sul-africanos e os indianos estão a tomar conta de tudo, a levar o ouro, as esmeraldas, as florestas e a pesca. E tudo o que se pode converter em dólares ou permita comprar prédios milionários em Maputo. Ninguém os pode parar. E ainda há o tráfico de droga, em que a sua longa costa se tornou numa rota necessária e conveniente. Daqui a trinta anos, serão 60 milhões de moçambicanos.
No mais, não se antevêem perspectivas de nada mudar significativamente, aparte haver mais bocas para alimentare aparecerem mais uns ricos.
Moçambique, que é independente há 46 anos, sempre sob a égide da Frelimo, permanece um dos países mais pobres, mais corruptos e mais vulneráveis do planeta. Aguenta-se porque tem a África do Sul ali ao lado e porque continua a merecer, legitimamente, toda a ajuda que puder obter. Pois a miséria que prevalece, essa, também é verdadeira.
Quanto ao epílogo colonial, hoje já não há portugueses em Moçambique. Ou melhor, há alguns, são 0.0001% da população. Se bem que, localmente, ainda sabe bem falar-se deles de vez em quando, displicentemente e se calhar apropriadamente, sobre os ex-colonos e os alguns bimbos que vieram a seguir. Há algum investimento português, mas apesar das mais róseas profecias da câmara de comércio bilateral, os riscos são titânicos. A verdade é que há muito que os portugueses já viraram a sua atenção para outros mercados e outros destinos. Curiosamente, a TAP ainda mantém a sua rota para Maputo e o governo português continua a dizer que Moçambique é "muito, muito importante", dando todos os anos milhões que os portugueses simplesmente não têm. Mas não é muito importante. É muito menos que isso. Portugal não é o Reino Unido e a CPLP não é a Commonwealth. O seu maior feito é ser o país onde fica o Benfica, que tem adeptos em Maputo. O actual presidente português, que passou lá uns breves tempos na juventude, quando o pai era o braço direito do sucessor de Salazar, diz nas entrevistas que ama o lugar e que quer ser sepultado lá quando morrer. Pois, que vá.
Recentemente, parece que o país se tem vindo a meter noutra guerra, desta vez centrada em Cabo Delgado, não se sabendo bem a que propósito, não se percebe ainda para quê e quem anda a mexer os cordelinhos. Já estão novamente a morrer civis inocentes moçambicanos e muitos mais a fugir das miseráveis casas onde sobrevivem.
Não sei se este é o país que Marcelino dos Santos sonhava que viria a ser em 2020.
Mas este é o país que deixou, hoje.
Certamente, num ritual pirotécnico e algo quixotesco, herdado dos tempos da Ditadura, o regime provavelmente irá proclamá-lo Herói da Nação e colocar uma medalha no seu caixão, que depositará numa caixa lá na Praça a caminho do Aeroporto, solenemente.
E depois ficará mais ou menos esquecido nos livros de história.
Bem ou mal, depois se verá.
In https://delagoabayword.wordpress.com/2020/02/12/requiem-por-marcelino-dos-santos-1929-2020/