No final de Janeiro, o grupo que proclama lutar em Cabo Delgado em nome do Estado Islâmico (ISIL/Daesh) atacava a localidade de Bilibiza, um posto administrativo a menos de 100 quilómetros de Pemba. A sua entrada na vila não teve oposição das forças armadas. Não houve decapitações e os maiores estragos foram repartidos entre um centro de formação de professores e uma escola agrária patrocinada pela Fundação AgaKhan, o braço desenvolvimentista dos ismaelistas, o braço do islão moderado.
Mais para a costa, a sede do distrito, Quissanga, foi poupada. Lá onde também aporta a droga trazida em dhows, a partir do Paquistão e do Afeganistão. Os alarmes soaram mas, aparentemente, nada aconteceu do lado das forças governamentais. Esta semana, em menos de 48 horas, as sedes distritais de Mocímboa da Praia e Quissanga caíram às mãos do ISIL/Daesh, na voz popular, os “ al shabaab” ou “ansar al-sunna” (apoiantes da tradição).
Grupos de rebeldes passearam-se sem oposição nas localidades, trajando fardas do exército moçambicano, keffiyetharábes cobrindo parcialmente o rosto e a cabeça. A bandeira do Daesh foi içada nas repartições do Estado e nas instalações das forças de defesa e segurança (FDS). O governo insiste na poeira para os olhos da opinião pública, fala de “malfeitores”, de “grupos sem rosto” e anuncia inconsequentemente o envio dos ministros do Interior e da Defesa para Mocímboa da Praia.
À patética ingenuidade governamental, em Janeiro, um relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas – a organização multilateral de que Moçambique faz parte –detalhava as actividades dos grupos de terror de inspiração islâmica em África, referindo que as actividades em Moçambique pertenciam à província da África Central do suposto Estado Islâmico. Uma clarificação dos contornos da agressão que sofre o país e as suas populações, even tualmente ajudariam a perceber os diferentes actores no xadrez político de Cabo Delgado e das zonas de potencial “infecção” em toda a zona norte.
Uma investigação mais aprofundada, poderia levar às ramificações do tráfico de drogas, dos negócios controversos no eixo Nacala-Nampula e na proliferação de centros confessionais decorrentes de longos anos de endoutrinação a partir das madrassaswahabitas frequentadas por jovens moçambicanos no Sudão e na Arábia Saudita. É esta rede operativa na costa de Nampula e no Niassa que serve de base aos recrutamentos para a “jihad” em Cabo Delgado. E a polícia di-lo, indirectamente, cada vez com mais frequência.
Por isso, a necessária separação das águas, a confrontação olhos nos olhos daqueles que são patriotas, investem no país, têm orgulho nos símbolos nacionais, independentemente de fazerem ou não orações cinco vezes ao dia e de frequentarem a mesquita às sextas-feiras.
Como os cristãos vão aos seus templos ao domingo. A outra questão fulcral que urge resolver ou dar resposta é a opacidade de que se revestiu o aparelho securitário – envolvendo os vários ramos das forças armadas e a polícia – desde 1975, que a coberto do mito dos veteranos da luta armada, em pleno século XXI, continua a resistir à mudança, à competência, ao mérito, ao rasgar das lealdades de cartão vermelho.
As FDS estão a ser humilhadas em Cabo Delgado. E nem a ajuda de mercenários melhora a sua situação operacional. Aconteceu antes, mas era o tempo do partido único, da informação sobre eventos militares controlada ferozmente, quando não havia internet nem “smartphones” que, num ápice, espalham para todo o lado os sorrisos da população saudando os encapuçados do Daesh em Mocímboa.
Não há contra-informação que resista. Chissano foi forçado a alterar a Constituição em 1990 e a assinar o Acordo de Roma de Outubro de 1992 porque as suas forças militares estavam à beira da capitulação. Hermínio Morais, o célebre comandante Bobo, que hoje se senta no parlamento, bem pode arranjar um patrocínio da empresa pública onde também o colocaram, para contar em livro as tomadas sucessivas de sedes distritais e localidades ao longo do Vale do Zambeze, tão humilhantes para o governo como a tomada de Mocímboa e Quissanga, esta semana.
No auge das confrontações, teve de ser accionada a Convenção de Genebra para trazer de volta a Moçambique os militares desarmados que se tinham refugiado no Malawi. 27 anos depois, o acordo sem vencidos nem vencedores, entre irmãos desavindos, foi aproveitado pelas elites cleptocráticas na Frelimo para se beneficiarem da paz e das oportunidades da economia de mercado, fazendo da democracia uma caricatura em que a Renamo foi usada para desempenhar o papel de “pateta útil”, desembocando nos sucessivos conflitos de “baixa intensidade” que se mantêm até hoje.
A tão apregoada vitória eleitoral esmagadora – incluindo em Mocímboa e Quissanga – não esconde as fragilidades de uma organização política que deixou evoluir um bando de jovens descontentes, usando catanas e azagaias no ataques às esquadras em Outubro de 2017, para uma força desdobrada, bem equipada, municiada , com apreciável capacidade logística, que depois do terror das decapitações e dos rituais pirómanos, se entrega agora ao charme da conquista de “mentes e corações”, como o foram as operações de Mocímboa e Quissanga.
Não há estado de emergência ou a invocação de protocolos securitários no âmbito da SADC e da União Africana para debelar a endemia que asfixia as forças armadas e o seu potencial humano ou um vírus ainda mais grave, inexorável, que passará eventualmente pela libertação dos libertadores. Os que mandam e dão ordens aos que vestem a farda.
Mesmo que a miragem dos recursos possa dar a impressão que a paz também pode ser comprada, a Frelimo, o poder de Estado aproximam-se a passos largos para a implosão, que a miragem da repressão musculada sobre os fracos nos centros urbanos dá a falsa sensação de controle e manipulação.
Os “ansar al-sunna”, com um simples fósforo, em Mocímboa, destruíram o blindado policial que enche de terror os informais que infestam as esquinas dos centros urbanos. Um simples fósforo.
MEDIA FAX – 31.03.2020