Por Viriato Caetano Dias ([email protected] )
A morte é o corredor da chegada. Para um corredor, avistar à meta, é uma alegria. Professor Hermano Saraiva (1919-2012), historiador português.
Morrer é partir primeiro para a eterna viagem que a ninguém perdoa. Arrone Fijamo Cafar (1915-1998), escritor moçambicano.
Estando ainda em cumprimento do auto-enclausuramento social, aquilo que os homens de bata branca (os profissionais da saúde) designaram por quarentena, recebi, na manhã do dia 25 de Março do ano em curso, a sinistra notícia da morte do Professor Catedrático Carlos Serra. O meu coração quase que parou, como se tivesse, na verdade, sido atingido por um irresistível raio. Não era o COVID-19 que me preocupava (porque a violência de qualquer pandemia fica suavizada quando são cumpridas as medidas profilácticas), mas, sim, o vazio deixado por Serra, um vazio que, sem exagero, compara-se ao buraco de ozono.
Realmente, com esta enormíssima perda, o deserto se expande quando, diariamente, secam partes significativas do escasso oásis de produtores de pensamentos. Revisitando a sua trajectória, é, pois, inegável que Serra não era um daqueles professores ad hoc que, empurrados pelo desemprego, pululam no mundo académico, infectando a sociedade pelos graduados de má qualidade. Não, nada disso. Serra foi uma autoridade académica que venceu os ditames ideológicos e “ultrapassou os favores da academia para ganhar os do público em geral”.
Quando o assunto era compulsar Moçambique, o pensamento de Serra não tinha e nem admitia rival. Moçambicanos de todas as veredas académicas e de todas as colorações políticas aprenderam e aprenderão das suas obras que já conquistaram as prateleiras da perenidade. Serra não se limitava, apenas, a compreender o mundo, mas a transformá-lo. Sob este respeito, ele pregava a necessidade de “Tirar a casca dos fenómenos e tentar perceber a alma dos gomos sociais sem esquecer que o mais difícil é compreender a casca.”. Para ele, o simples não era simples. O simples estava, na verdade, carregado de complexidade que, muitas vezes, não era visível a olho desarmado, destreinado e preconceituoso.
Inferindo sobre alguns dos problemas que enfermam o desenvolvimento democrático do nosso país, Serra escreveu, em seu premiado blogue, denominado o “Diário de um Sociólogo, o seguinte: “Em meio a tantos problemas (problemas que, de forma sistemática, alguns tentam esconder), resta saber que decisões serão tomadas (se forem) em relação ao quadro traçado pelo TA. Anos após ano os problemas são apontados. Mas os problemas apontados são bem mais que problemas: são ingredientes de um sistema. E aqui está o problema. Quem no sistema corrige o sistema?”. Aqui, Serra parecia entender a dificuldade do dançarino que pretendesse ser, simultaneamente, membro do júri.
É claro que, nessa titânica tarefa de transformar o mundo, Serra nem sempre foi compreendido, por isso alvo de críticas de autores que nunca primaram pelo espírito de imparcialidade e justiça, entrincheirando-se cegamente nos apriorismos que sempre ofuscam a verdade. Na altura, erguendo-se em sua defesa, um correligionário (Nkulu) pediu-me que lhe endereçasse esta solidária mensagem: “Quando a grandeza de um homem fica kilimanjarada, dificilmente é compreendido pelo regime do dia, pelo sistema e pelos acólitos da má pregação. É o caso do Professor Serra.”
O meu único “contacto físico” com o Professor Serra ocorreu no pretérito ano de 2004, na actual Escola Superior de Jornalismo, quando, em Muidumbe, na Província de Cabo Delgado, se dizia que um “leão mágico” tinha predileção em comer pessoas. Então, o meu amigo e jornalista Leonardo Costa, com a devida anuência da direcção da escola, organizou uma palestra para ouvir a opinião de Serra. Este, em lugar de fazer uma destilação extenuante de conjecturas teóricas que de nada ajudaria na interpretação e análise dos dados, pôs-nos a ouvir reportagens que, na época, gravitavam em torno do assunto. A de Óscar Limbombo era profissional e estava alinhada com a ética e os valores do jornalismo.
Após ouvir as reportagens, as conclusões eram convergentes: afinal o problema estava nas fontes. Nunca alguém vira o “famigerado” leão, assim como óbito algum ocorrera em Muidumbe vitimado pelas mandíbulas caninas do rei absoluto da selva! Feitas as contas, instigado por incontidos sentimentos de inveja, a comunidade local linchou cerca de duas dezenas de compatriotas. Uma das frases que Serra debitou naquele encontro foi “Os boatos ganham terreno quando duas condições estão reunidas: incerteza e medo.” E porquê não, o desejo de pôr em marcha determinados oportunismos, usando a fúria popular, para saldar as dívidas historicamente acumuladas?
Esta homenagem aproxima-se do fim, mas antes gostaria de partilhar com os leitores mais dois acontecimentos marcantes que ilustram bem a dimensão da biblioteca viva que fora Serra. Andava a roer-me o pensamento o facto de, nas manifestações, avultar-se a presença de crianças. Queria perceber, no fundo e do ponto de vista sociológico, o mote da presença de pessoas daquela tenra idade nos aglomerados de protestos. Serra, que não deixava órfã uma questão de índole académica, respondeu-me, sociologicamente, nos seguintes termos: “Nos bairros da periferia vivem muitas crianças, como sabe, a vida é calórica, muito colectiva, à vista de todos, tudo é transformado em novidade e festa e aventura e luta. Leia o primeiro volume do meu livro de linchamentos. E leia um dia 'Os filhos de Sanchez' de Oscar Lewis.”
O segundo, como a seguir o seu conselho, foi no garimpo da minha Tese de Doutoramento. Assumindo-me defensor dos “sem vozes”, as comunidades afectadas pela mineração, quis perceber a crueldade das transnacionais pelo facto de, instigados pelo vil metal, abandonarem os reassentados. Serra, mais uma vez, endereçou-me uma resposta que ainda hoje me comove e transcrevo-a: “O reassentamento - palavra despida de paixão e história - de pessoas deslocadas dos seus locais de origem e de vida parece ter-se tornado corrente no país, como se o espírito das antigas companhias majestáticas tivesse regressado. O reassentamento é bem mais do que um conjunto de mudanças, tecnicamente situadas, na vida das pessoas. É, especialmente, um deslocamento rural doloroso para fora da matriz das origens, dos familiares falecidos, do contacto propiciador com os seus espíritos, do elo simbólico com os cordões umbilicais dos nascidos cuidadosamente enterrados e propiciados. O Capital preocupa-se com lucros, não com essa inexorável morte cultural. Por isso vão engrossando as hostes dos Filemos e das Báucias não do Fausto de Goethe, mas do nosso país.”
Esta alegoria, segundo Serra, exprime a história patente no livro “Fausto” de Goethe, em que um casal de idosos, Filemo e Báucia, habitantes da propriedade de Fausto, o qual, para construir um posto de observação do novo mundo (capitalista), um mundo moderno, cheio de trabalhadores e de comércio, em detrimento da vontade do casal, teve de os matar e tomar a propriedade deles. Assim, também, como que modelo daqueles que, pertencentes ao mundo tradicional, são obrigados a sair das suas terras para dar lugar a construção de barragens, à exploração mineira, ao cultivo industrial, entre outras infra-estruturas.
Não sei se teria conseguido pagar a impagável dívida, pois o capital recebido de um académico de peso e gabarito do Professor Carlos Serra rende juros ao longo de toda a vida, mas pedi-o que me autorizasse o seguinte agradecimento, cuja inspiração veio da terra (Tete) que guarda e conserva, silensiosa e carinhosamente, os nossos cordões umbilicais: Ao Professor Catedrático Jubilado Carlos Serra, “ilha académica”, biblioteca viva e figura notável e incontornável da ciência produzida em Moçambique. O seu extenso e lauto acervo bibliográfico facultado e esclarecimentos feitos permitiram fazer o diagnóstico e a análise cuidadosa dos fenómenos sociais. Deixo-lhe aqui a minha homenagem e um enorme agradecimento.”
Penso que vale a pena seguirmos a lição de inteligência do Professor Catedrático Jubilado Carlos Serra. Zicomo e endereço os meus pêsames à família enlutada, especialmente ao Carlos Serra, ambientalista, filho, pela orfandade imposta pelo destino comum, a morte, consciente de que estas palavras de consolação são incompetentes em repor a vida. Até sempre, Professor Carlos Serra.