AS ORIGENS (I)
Para se compreender como se chegou à actual situação política moçambicana é preciso recuar até aos primórdios da constituição da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), fundada em Fevereiro de 1962 em Acra, durante a “African Freedom Fighters Conference” organizada pelo Presidente do Gana, Nkwame Nkrumah (o pai do Pan-Africanismo) e formalmente constituída em 25 de Junho de 1962, em Dar-es-Salam, na Tanzânia, como resultado da fusão de três movimentos: a UDENAMO (União Nacional Democrática de Moçambique) que tinha como seus fundadores, moçambicanos refugiados na antiga Rodésia do Sul, na maioria originários de meios católicos do antigo distrito de Manica e Sofala, como Uria Simango e Mateus Gwenjere a MANU (União Nacional Africana de Moçambique), movimento cujos líderes eram Mateus Mole e Malinga Milinga essencialmente formado por emigrantes macondes no Quénia e na Tanzânia, e a UNAMI (União Nacional para Moçambique Independente), formada em 1961 por Evaristo Gadaga e Baltazar da Costa Chagonga, originários de Tete e constituída por nativos desta mesma província.
Eduardo Mondlane, um “changane”, originário de Chibuto na província de Gaza, sul de Moçambique, chega à FRELIMO, já depois de esta constituída, à boleia de um programa levado a cabo pelas Nações Unidas nos territórios colonizados com a deslocação a Africa várias individualidades, uma das quais é precisamente Mondlane e que se terá antecipado à chegada à Dar-Es-Salaam a Urias Simango e Paulo Gumane (ausentes da Tanzânia) e apresentado a sua comunicação à referida Comissão dos Assuntos Políticos da ONU para os Países Africanos de Expressão Portuguesa liderada por Archerk Maroul da Guiné Conacri.
O certo é que na sequência da sua intervenção na referida Comissão - de resto, bastante louvada tanto nos circuitos políticos ligados ao poder tanzaniano que o elogioram como sendo um académico moçambicano a leccionar na "Syracuse University" de Nova Iorque - Eduardo Mondlane (que só na véspera do Congresso se filiou na UDENAMO), foi designado presidente da Frelimo e Uria Simango, vice-presidente.
Hoje, é claro pelo relato de diversos intervenientes neste processo de constituição (1), que nenhum dos nomes que hoje a FRELIMO reivindica como seus fundadores, incluindo Mondlane, Machel, Chissano, o são verdadeiramente (alguns deles só aderiram à Frelimo em 1963, e Guebuza por exemplo, apenas em 1964).
Contudo, pouco tempo após o início da sua presidência, Mondlane é acusado de privilegiar na nomeação dos dirigentes do movimento os originários (“changanes”) do sul de Moçambique. Os “macondes” que constituíam o grosso dos emigrantes moçambicanos na Tanzânia queixavam-se de que não havia nenhum maconde nos lugares de direcção (Mateus Mole, antigo líder da MANU tinha sido entretanto expulso da direcção por divergências) e estudantes do Instituto Nacional Moçambicano em Dar es-Salaam, na sua larga maioria provenientes do norte do Save, acusaram mesmo a direcção de Mondlane de tribalismo e de regionalismo, situação que levou a eclosão de desacatos, ao fecho temporário do Instituto, e à morte do seu director Mateus Sansão Mutemba, nascido no sul de Moçambique, e então membro do Comité Central da Frelimo. (2)
Esta crise no seio da FRELIMO iria atingir o seu auge após a morte de Eduardo Mondlane, em Fevereiro em 1969, isto porque de acordo com os estatutos da Frelimo seria Uria Simango, então vice-presidente, a substituí-lo automaticamente. Tal não aconteceu tendo sido constituído um triunvirato composto por Samora Machel, Marcelino dos Santos, e do próprio Simango, para dirigir o movimento, facto que acentuou as divergências no seio da Frelimo, sobretudo entre os membros do triunvirato, pois Simango não estava de acordo com esta nova situação. Assim, em Novembro de 1969, Uria Simango publica um documento intitulado Gloomy Situation in Frelimo (“Triste Situação na Frelimo”), no qual afirmava que o tribalismo dos dirigentes sulistas da FRELIMO era o primeiro responsável pela crise pela qual o movimento estava a passar, na sequência da qual foi forçado a abandonar a Tanzânia, com toda a sua família, e a pedir exílio político no Egipto.(3)
A partir de então, acentuou-se a predominância sulista no seio da FRELIMO - cuja direcção passou a ser maioritariamente composta por indivíduos do sul de Moçambique - com a consequente discriminação dos moçambicanos (“chingondos”) do norte do rio Save, o que nos ajuda a compreender muito do que hoje se passa no país e a previsível evolução do que se virá a passar.
O PÓS-INDEPENDÊNCIA: A ascendência do ex-Reino de Gaza (II)
Efectivamente, quem toma o poder após a independência de Moçambique em 1975 é a elite que estava à frente da FRELIMO, ligada ao antigo Reino de Gaza, cujo relacionamento histórico de longo prazo é com as monarquias nativas do sudeste africano, e que entronca a sua raiz histórica na invasão zulu do sul de Moçambique nos princípios do século XIX e que dá origem ao Reino de Gaza. Na resistência ao poderio dos ingleses na região do Natal, emerge um príncipe guerreiro chamado Shoshangana que parte da Zululândia (4) e forma o reino de Gaza, um reino feudal que ia até ao Rio Save. Estamos no último quartel do século XIX e é nessa altura que Mouzinho de Albuquerque transfere a capital da Ilha de Moçambique para Lourenço Marques (actual Maputo) e consolida o Estado moçambicano colonial a partir da conquista de Gaza e da captura do Gungunhana que é bisneto de Shoshangana.
Quando Moçambique ascende à independência deu-se uma apropriação do Estado pelos descendentes do antigo Reino de Gaza (5), constituídos como uma aristocracia com identidade política própria e muitas ligações à África do Sul que se reforçaram no período pós-independência, de cujas ligações aristocráticas são exemplo o facto de todos presidentes de Moçambique (Mondlane, Samora, Chissano, Guebuza) serem todos naturais da província de Gaza, Joaquim Chissano ser bisneto de um dos principais “indunas” (vassalos) do Gungunhana, o herdeiro directo do Gungunhana ter sido durante muito tempo governador da província de Gaza como representante da FRELIMO, ou o casamento dinástico entre Mandela e Graça Machel, ligação entre um descendente de um príncipe (cuja primeira mulher era uma “dlamini” da linha real zulu) e a viúva de Samora Machel, figura central da nova elite do sul de Moçambique.
Tudo isto não teria importância, se tivesse havido por parte por parte da FRELIMO, após a independência, o intuito da constituição de um verdadeiro Estado em Moçambique assente na existência de uma elite surgida directamente da vida nacional e alargada aos povos do Centro-Norte do país.
Pelo contrário, o que se verificou foi através dos crimes perpetrados pelo Estado da FRELIMO, a eliminação física em 1978 (3 anos após a independência), no denominado “Processo de Nachingwea”, de nacionalistas moçambicanos, como Uria Simango, Joana Simeão, Lázaro Nkvandame, Padre Gwengere, Paulo Gumane, Adelino Gwambe, Basílio Binda, todos eles oriundos das regiões e representantes dos povos do norte-centro de Moçambique.(6)
A partir daqui, a FRELIMO e as elites tradicionais da província de Gaza (os núcleos ligados às populações crioulas urbanas e à elite militar dos macondes foram sempre diminutos perdendo cada vez mais poder no interior da FRELIMO) tomaram definitivamente conta do poder político e do aparelho de Estado em Moçambique, alicerçadas ainda, por cima, num sistema de partido único e num modelo de raiz socialista.
RENAMO: Surgimento e desenvolvimento (III)
O surgimento da RENAMO e da guerra civil, têm a ver precisamente com este modelo político de predomínio do sul - embora o processo da sua constituição coincida inicialmente com o apoio dos regimes do “apartheid” na África do Sul e da Rodésia que ao tentarem sobreviver a todo o custo, estabelecem negociações com os dirigentes da RENAMO no sentido de criar um pólo de resistência anti-comunista em Moçambique - a verdade é que posteriormente o seu desenvolvimento está intrinsecamente ligado à luta contra o domínio dos povos do sul.
Com efeito, a RENAMO fundada por André Matsangaíce (7), um dissidente da FRELIMO, morto pelas forças governamentais na Gorongosa em 1979, a que se sucedeu Afonso Dhlakama, ambos não certamente por acaso pertencentes à etnia “Ndau”, grupo étnico que habita nas actuais províncias de Manica e Sofala do centro de Moçambique e cujos ancestrais do Reino de Sanga sempre se opuseram aos invasores angunes do sul do Save (8), rapidamente estendeu a sua influência aos restantes povos do centro-norte.
Só por que tem o apoio destas populações (do centro-norte) marginalizadas pelo Estado Frelimista, se compreende que uma década mais tarde, já muito depois da independência do Zimbabwe (e sem o apoio de Mugabe), a RENAMO no decurso da guerra civil está activa em 80% do território moçambicano, tendo obrigado a FRELIMO à celebração em 1992 do Acordo Geral de Paz e à realização em 1994 das primeiras eleições multipartidárias. Nestas, a RENAMO obtém 40%, (38,81% nas de 1999), enquanto nas presidenciais Dlakama recebe 47,7% e Chissano 52%. Estamos, portanto, a falar de diferenças mínimas de votos (em 1999 a diferença entre os dois partidos foi de cerca de 225 mil votos, mas a Comissão Eleitoral considerou nulos 378 mil votos), mas a verdade é que tudo permaneceu na mesma, mantendo-se a “estatização” e a opção centralizadora da administração do território por parte da FRELIMO.
Teria sido a ocasião de, após as eleições de 1994, negociar com a RENAMO a instituição de um novo sistema político de descentralização “gradual”, o que daria às populações das províncias do centro-norte - as mais populosas e onde de facto a RENAMO é maioritária, por ex., nas últimas eleições gerais de 2014 Dhlakama parece ter ganho em 6 províncias (Sofala, Manica, Tete, Zambézia, Nampula e Niassa), embora a RENAMO apenas em Sofala e Zambézia - a sensação de que, quando votavam, elegiam alguém que as representava e de que eram governadas por membros eleitos por si próprias, enfim, que estavam num regime democrático.
Não tendo sucedido isso, Moçambique vive a partir daí num círculo vicioso de sucessivas eleições (consideradas fraudulentas por parte da RENAMO), acordos e desacordos de paz, conflitos militares, sem que alguém lhe consiga pôr cobro, como o comprova a actual situação político-militar em que a guerra é uma realidade bem presente, embora não oficialmente reconhecida por nenhuma das partes.
O Dilema do Futuro (IV)
Há por isso quem advogue no seio da FRELIMO a solução da “savimbização”, ou seja, a eliminação física de Afonso Dhlakama (9), não se percebendo muito bem qual o plano na mente do presidente Nyusi (10) sobre a questão do diálogo com o líder da RENAMO.
Sem resolver a questão essencial do regime (“desestatização” da FRELIMO e a integração da RENAMO num poder político descentralizado, como por esta reivindicada com a proposta de lei “das autarquias provinciais” (11)), não nos parece que a “savimbização moçambicana” resolva o futuro político de Moçambique, essencialmente por três ordens de razões:
- por um lado, ao contrário de Angola, onde quase 50% da população do país vive em Luanda, em Moçambique a maioria da população vive no centro e norte do país, exactamente as zonas de maior implantação da RENAMO;
- por outro, atenta a grande diversidade étnica (12), cultural e linguística dos povos de Moçambique (por contraponto a Angola assente em duas etnias dominantes, a dos “ovimbundus” e dos “quimbundos”), não existem factores de identidade potencialmente integradores da unidade nacional da «nação moçambicana», a qual só pode assentar numa construção de natureza política;
- por último, não se sabe se a sucessão de Dhlakama, uma vez que não lhe são conhecidos adversários internos como existiam em relação a Jonas Savimbi, enfraqueceria a RENAMO ou, pelo contrário, não a tornaria ainda mais radical.
A ir por diante esta ideia da “savimbização será uma nova e porventura a derradeira tentativa de a FRELIMO, que decide os destinos do país desde a independência e há mais de 40 anos, se perpetuar no poder de forma hegemónica.
Acresce que sobre o futuro de Moçambique paira uma realidade que é a da explosiva combinação da “maldição dos recursos naturais” com o “islamismo”.
Na realidade, a crescente influência de grupos radicais islâmicos em África (Boko Haram, Al-Shabaab e outros em países do norte e centro (Nigéria, Chade, Camarões, Sudão, Somália) e em expansão para o sul (atingindo já o Quénia) surge sempre associada a estas duas realidades, o da existência dos recursos naturais e do fundamentalismo islâmico.
Ora, em Moçambique, os recursos naturais (carvão, ouro, areias pesadas, lítio, tântalo, pedras preciosas, gás natural,) situam-se todos nas províncias do centro-norte (Tete, Manica, Nampula, Zambézia, Cabo Delgado), cujas populações sempre foram, mesmo anteriormente à chegada dos portugueses, predominantemente islamizadas. (13)
Em todos os países africanos esta combinação entre o radicalismo islâmico e a tentativa de controlo dos recursos naturais pelos grupos radicais islâmicos tem originado uma desagregação da unidade dos mesmos, com a criação de dois Estados paralelos e em confronto permanente: um, dominado pelos cristãos, e outro, muçulmano e dominado pelo Islão radical.(14)
E do Quénia ao norte de Moçambique, dista apenas a Tanzânia que não representará um verdadeiro tampão ao expansionismo do islão radical.
E se isto se vier a verificar em Moçambique - que espero bem que não suceda - a FRELIMO para além de não ter qualquer capacidade de lhe responder, será cúmplice por, ao longo dos mais de 40 anos de exercício de poder, não ter querido construir a unidade da «nação moçambicana». (15)
Carlos Antunes
(Cidadão luso-moçambicano)
(1) Jaime Maurício Khamba “Revelações ensombram história da FRELIMO e Mondlane” afirma que na formação da FRELIMO os nomes hoje mencionados como sendo obreiros da unidade nacional (Eduardo Mondlane, Samora Machel e muitas outras figuras na liderança da Frelimo) não passam de uma invenção.
(2) Sérgio Chicava “Por Uma Leitura Sócio-Histórica da Etnicidade em Moçambique”, IESE – Instituto de Estudos Sociais e Económicos, 2008
(3) Barnabé Lucas Nkomo “Uria Simango: Um homem, uma causa”, 2011, Editor Fernando Gil
(4) O Reino Zulu que floresceu com o famoso rei Shaka, ocupava em grande parte o território da actual província sul-africana do KwaZulu Natal
(5) Ao contrário da história oficial da Frelimo que sustenta o Reino de Gaza como o berço da resistência ao colonialismo português, a verdade histórica é que o nacionalismo moçambicano brotou no centro-norte muito antes do sul. A história da batalha de Coolela (ou de Gwaza Muthine) como a mais emblemática contenda contra a dominação colonial portuguesa e de Gungunhana como um herói de todos os moçambicanos é uma pura falácia construída pela Frelimo, pois há testemunhos que duvidam da sua liderança e heroísmo: o Dr. Liengme citado por A. Rita Ferreira in “Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique”, pág. 197, relata «Em 1892, por ocasião da nossa visita, Gungunhane poderia ter 40 a 45 anos. Era um ébrio inveterado. Após qualquer das numerosas orgias a que se entregava, era medonho de ver com os olhos vermelhos, a face tumefacta, a expressão bestial, que se tornava diabólica, horrenda, quando, nesses momentos, se encolerizava. Lembramo-nos de, um dia, termos ousado contradizê-lo a propósito dos Chopes, seus mortais inimigos, defendendo que também eram seres humanos e como tal deviam ser tratados. Apossou-o um furor terrível, rilhando os dentes, rolando os olhos ferozes, invectivou esses desgraçados Chopes que, segundo ele, deviam ser exterminados ou reduzidos à escravatura: Matá-los-ei, essas caras cortadas, Matá-los-ei, repetia, enraivecido.»
(6) A lista dos nacionalistas vítimas desta purga freliminista é muito mais extensa como relatado por Baptista Comessário Caetano em “A Violéncia Política em Moçambique de 1966 a 1998: O caso do Padre Mateus Pinho Gwengere”, Universidade Católica de Moçambique, Beira, 2015
(7) Barnabé Lucas Ncomo “André Matsangaíce: Da realidade hisórica; Do Mito até à morte de um homem” (http://macua.blogs.com/), André Matsangaíce que curiosamente foi escolhido por Samora Machel para hastear a bandeira de Moçambique na cerimónia realizada no Estádio da Machava commemorativa do dia da independência em 25 de Junho de 1975, mais tarde foi feito prisioneiro no campo de reeducação de Sacuze – um dos muitos criados por Armando Guebuza, à época ministro do Interior, para a reedução, entre outros, de dissidentes políticos, prostitutas, alcoólicos, autoridades tradicionais, como régulos e curandeiros, a maior parte dos quais não regressou com vida – do qual se evade para criar a Renamo.
(8) A teoria defendida de resistência "moçambicana" ao colonialismo português a partir do Reino de Gaza é absurda. Gungunhana foi um chefe tribalista como outro qualquer que lutou pela sua nação “Gaza” e não por Moçambique, e isto pela simples razão de que a existir uma nação chamada Moçambique (o que é duvidoso, mesmo nos dias de hoje, tendo em atenção que os conceitos de “Estado” e “Nação” não são coincidentes) ela só existe já bem dentro do século XX. Depois, porque desde sempre houve centenas de manifestações de resistência dos diversos Reinos que então povoavam os actuais territórios moçambicano e dos países limítrofes, aos invasores portugueses (“prazeiros”), mas também e essencialmente entre eles pelo domínio de territórios, prazos, praças, mercadorias ou pelo comércio dos escravos. Dizer que estes Reinos (Gaza, Mutapa, Báruè, Teve, Sanga, Danda, etc.) ao lutarem contra a presença portuguesa o fizeram para libertar Moçambique não corresponde à verdade histórica.
Conforme acentua A. Rita-Ferrreira, ob. cit. «O próprio Gungunhane conservou a capital do Império de Gaza nestes territórios setentrionais, até 1889, ano em que decidiu transferir-se para as planícies próximas do Baixo Limpopo, fazendo-se acompanhar por 80.000 Vandaus (“Ndaus”), parte dos quais morreu de fome e doença. Os regimentos que atacaram as tropas portuguesas em Coolela e Macontene eram, em grande parte, constituídos por Vandaus (“Ndaus”). A crença no superior poder mágico-religioso dos Vandaus (“Ndaus”) aliada ao suposto ódio de vencidos mobilizados para combater pelos seus arrogantes senhores angunes, fez dissiminar a pertinaz crença na possessão de espíritos vingativos, nhamussuro, que tanto continuam a atormentar os autóctones do Sul do Save», estranha evocação de espíritos Ndaus que nos tempos actuais e por alguns relatos de combates, continuam a ser ressuscitados e a proteger os guerrilheiros da RENAMO e a atormentar os soldados da FRELIMO.
(9) De resto, já tentada nos ataques à sua comitiva ocorridos na Chibata (12.09.2015), Zimpiga (25.09.2015) e à armadilha que lhe foi montada em 9.10.2105, no assalto à sua residência no bairro das Palmeiras na cidade da Beira, e que o levou ao regresso uma vez mais ao seu refúgio na serra da Gorongosa.
(10) Filipe Nyusi é o primeiro presidente de Moçambique não originário do Reino de Gaza (pertence à etnia maconde) e não ligado também à fundação da Frelimo. Ministro da Defesa no governo do ex-presidente Guebuza, muitos analistas consideram que a indicação para candidato da Frelimo às presidenciais, foi a forma de Guebuza, já no limite de mandatos, manter o poder após abandonar o cargo, o que de certo modo se tem vindo a confirmar em face das polícias assumidas (ocultação das dívidas realizadas no consulado de Guebuza, cedência perante a linha dura da Frelimo no relacionamento com a Renamo, etc.).
(11) Não se pense que a proposta de lei de criação de “autarquias provinciais” apresentada pela RENAMO, na sequência das eleições de 2014, como forma de descentralização de poderes do Estado (cuja constitucionalidade foi de resto defendida pelo Prof. Gilles Cistac barbaramente assassinado na sequência dessa tomada de posição) corresponda a uma reivindicação inédita da sociedade moçambicana. Basta lembrar, como o refere Sérgio Chicava, paper cit., a constituição em 1968, ainda no tempo da luta anti-colonial, da UNAR (União Nacional da Rombézia, que pretendia a independência da região que vai do Rovuma até ao Zambeze - Cabo Delgado, Niassa, Nampula, Tete e Zambézia), por dissidentes da FRELIMO (Amós Sumane, Matias Tenda, Mazunzo Bobo) que acusavam os dirigentes sulistas de serem movidos por intuitos “tribais”, ou já no pós-independência a criação da SOTEMAZA (cujo acrónimo representa as províncias de Sofala, Tete, Manica e Zambézia) encabeçada por Pedro Comissário, então embaixador de Moçambique na ONU, que numa carta dirigida ao presidente Joaquim Chissano, dizia não compreender as razões da exclusão dos “chissenas” do poder - o segundo maior grupo étnico do país, e ao qual pertencia - inclusão no governo que iria acabar com a humilhação e marginalização de que eram vitimas no seio da sociedade moçambicana. Este pedido de Pedro Comissário que indicava mesmo uma lista de personalidades da etnia “chissena”, que segundo ele eram capazes de exercer funções de direcção no seio do Governo, foi a primeira a ser feita na história do Moçambique independente, e muito antes pois da actual reivindicação da governação das “autarquias provinciais” por parte da RENAMO nas ditas províncias.
(12) Sérgio Chicava, paper cit.
(13) Efectivamente, conforme relata A. Rita-Ferrreira em “Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique” muito antes da chegada dos portugueses à costa de Moçambique e de estes terem monopolizado o tráfego comercial do Oceano Índico, inúmeros são os vestígios de um intenso comércio milenário com o Oriente, e da existência de profundas marcas da islamização dos habitantes do litoral norte de Moçambique e de importantes centros de poder islâmicos (Sultanato de Angoche e os Xeicados de Quitangonha, Sancul e Sangane, cujos sultão e xeiques resistiram e só foram derrotados definitivamente pelos portugueses por volta de 1910).
(14) Na última viagem que fiz a Moçambique pude constatar a grande proliferação por todo o país de “madrassas” (“escolas corânicas” que ressurgiram após o seu encerramento no final dos anos 30 do séc.XX, e da tentativa falhada por parte do poder colonial da sua subordinação ao sistema educativo oficial e à substituição do árabe pelo português), e receio bem que nem todas elas ensinem o islão moderado.
(15) A maior parte das referências bibliográficas citadas foram retiradas do excelente blog de Fernando Gil “Macua Moçambique” (macua.blogs.com) que disserta sobre a actual realidade de Moçambique com notável independência de opiniões.
26.07.2016
Em tempo:
Constato, infelizmente, que os recentes acontecimentos parecem dar razão às minhas previsões: por um lado, o 1.º ataque dos radicais islâmicos concretizou-se em Outubro de 2017 (um ano depois deste meu escrito), e agora (Março de 2020) o presidente Nyusi admite pela primeira vez, na posse dos novos membros do Conselho Nacional de Defesa e Segurança que «os ataques por grupos suspeitos de 'jihadismo' no norte do país estão a colocar em causa a soberania do país», ou seja, podem comprometer a soberania de Moçambique.
Não sei como será o Moçambique próximos 20, 30 ou 50 anos, mas prenuncio que o futuro será o de um país dividido a meio pelas fonteiras naturais dos rios Save ou Zambeze, um sul cristão que pode eventualmente continuar a ser dominado pela Frelimo, e um norte dominado por um estado islamizado fora do poder da Frelimo.
A dúvida será para onde penderá o centro (actuais províncias de Sofala e Manica) entre o Save e o Zambeze? Será que, por outros meios, e mais de um século depois, se concretizará o sonho de Cecil Rhodes e da sua British South Africa Company da expansão do colonialismo britânico pelo Moçambique dentro até ao Oceano Índico e da extensão da Rodésia (actual Zimbabwe) pelo centro de Moçambique até ao mar (é bom lembrar que Rhodes chegou em Novembro de 1980 com as suas tropas até ao Púnguè e só foi parado pelo tratado anglo-português de 1891, que deu a Moçambique a sua configuração actual).
E se este desmembramento ocorrer, mais não será do que o resultado da política desenvolvida pela Frelimo, nestes quase 50 anos de poder após a independência, que nunca se preocupou com a inclusão “de todos os moçambicanos num Estado nacional uno”.
Entre “inclusão” e “submissão” a escolha tem sido sempre recaído na segunda alternativa. Com as consequências que daí advirão no futuro.
Oxalá não venha a ter razão!
Carlos Antunes
(Cidadão luso-moçambicano)
28.03.2020