Por Major Manuel Bernardo Gondola
O filósofo Bissau-guineense, Filomeno Lopes esteve em Moçambique para o Colóquio Internacional sobre os [20] anos de Reintrodução da Filosofia especialmente na Escola Doutoral de Filosofia da Universidade Pedagógica. Foi sua segunda viagem intelectual a Moçambique. Estudioso de teologia, com doutorado em Filosofia e Comunicação Social; trabalha como jornalista na Rádio do Vaticano e é autor de Filosofia intorno al fuoco. Il pensiero africano contemporâ-neo tra memoria e futuro (Bologna: editrici missionaria Italiana, 2001); Filosofia senza feticci (Roma: Edicione Associate, 2004); E se l’Africa scomparisse dal mappamondo? (Armando Editore, 2009); Bonga Kwenda: um combatente africano da liberdade africana (Torino: L’ Harmattan, 2013) entre outros títulos. Também é membro do grupo “Fifito & Bumbulum” que usa a arte como recurso para uma filodramática que promove uma pedagogia sensível de educação para a paz.
Beneficiei da honra de o apresentar no Colóquio Internacional sobre os [20] anos de Reintrodução da Filosofia em Moçambique. o Filomeno Lopes me recebeu no hotel em que esteve hospedado em Maputo. Parte da conversa que segue foi publicada na Revista de Humanidades e Letras.
Pergunta (P) Como concebe a sua tarefa como filósofo.
Resposta (R) “Como concebo a minha tarefa como filósofo?”: muito simples: nunca me considerei filósofo. O que procuro fazer é tentar usar os conhecimentos filosóficos que adquiri durante os meus anos de estudo universitário, para tentar ajudar nesta nobre causa do serviço aos nossos países e povos africanos em busca perene dos caminhos da paz, do progresso e da felicidade, como rezam os paradigmas da luta de libertação dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa a que pertenço. Sempre considerei que o saber é para nos capacitar a servir os nossos países e povos. No meio de tantos problemas que hoje temos, procuro perguntar de que maneira posso ajudar usando os instrumentos do conhecimento filosófico, teológico, artístico e comunicacional que adquiri nos anos de estudo.
(P). Como o Sr. define a filosofia africana? Como o Sr. vê a diferença entre problemas e desafios da filosofia africana colonial e pós-independência?
(R). Quando digo “se eu fosse chamado para uma mesa de diálogo para tentar responder (e não solucionar a certos problemas, na condição de filósofo o que a minha cultura africana poderia oferecer”, entendo antes de mais, que a filosofia como tal não está necessariamente vocacionada a questionar sobre “o como” das coisas, mas sim sobre, as suas razões de ser, sobre o porquê e as causas últimas. Neste sentido, o filósofo procura não as soluções, mas as respostas que deverão ser postas ao serviço da avaliação de outras ciências exactas cuja tarefa é procurar soluções definitivas aos nossos problemas vitais; daí a necessidade do filósofo, africano neste caso, hoje de aprender a trabalhar em equipe, de forma interdisciplinar e intercultural, se deseja contribuir à causa da batalha para o triunfo da vida sobre a morte em África e pelo mundo fora; em terceiro lugar é o facto que nós somos sempre “nós e as nossas circunstâncias: históricas, culturais” etc. e não podemos prescindir disso. Daí que como africano é sempre um imperativo para mim aprender a pensar com a própria cabeça e a partir do contexto histórico e cultural no qual estamos a viver, mesmo se com a clara consciência de pertencer sempre à um mundo mais global; não podemos porém prescindir do imperativo de pensar os nossos problemas africanos a partir dos paradigmas culturais africanos se o nosso objectivo é responder aos desafios com que estão hoje confrontados os nossos países e povos africanos; no diálogo com os outros se espera de nós uma resposta que só nós enquanto africanos somos capazes de dar e que nenhum outro povo pode oferecer por conta nossa.
Enfim, a minha cultura africana é a ponte que não posso saltar em nenhum diálogo “pluriversal” (porque eu sou africano), mas que sou chamado a transitar naquele diálogo que Senghor chama o “apontamento do dar e do receber” na tarefa comum de construção de uma “civilisation de l’universel”. A verdade, caminho e meta da filosofia, é sinfónica (von Balthasar), relacional: a nossa nota cultural, “o lá”, só nós africanos a podemos cantar no coro da sinfonia com outras notas culturais em busca do mesmo triunfo da vida sobre a morte no planeta terra. Daí portanto a importância e o grande desafio dos paradigmas para a filosofia africana hoje em dia. Cheikh Anta Diop dizia que até quando nós continuaremos a analisar os nossos problemas africanos (passado, presente e futuro) utilizando os paradigmas do mundo euronorteocidental, jamais conheceremos a exaltação da liberdade.
A cultura é uma componente importante no diálogo filosófico com os outros povos hoje em dia. «E nós africanos temos que sair definitivamente desta prisão na qual nos encontramos até hoje: o de sermos o único continente onde ainda se pensa sistematicamente o que não se vive e se vive o que não se pensa. Isso nos leva a ser sempre consumidores daquilo que não produzimos e produtores daquilo que não consumamos». Se não aprendermos a pensar seriamente a partir dos nossos paradigmas continuaremos a produzir um saber filosófico alienante, constantemente em diálogo com o mundo exterior e incapaz de dialogar com o mundo local porque é fundamentalmente exógeno. Ora, nenhum desenvolvimento sério se produz sem um pensamento endógeno e portanto mediante uma mera cultura do mimetismo. Enfim, não podemos prescindir da difícil tarefa de pensar sempre com a nossa cabeça e a partir do nosso contexto histórico e cultural, embora com o olhar de abertura global, pena o anulamento de nós mesmos como sujeitos estratégicos da construção da própria história e historicidade no concerto da grande família das nações. É também importante saber dialogar, com base nisto, com a criatividade endógena, o imaginário colectivo mediante ao qual as pessoas procuram respostas concretas aos imensos desafios com que estão quotidianamente confrontadas. O filósofo africano não pode prescindir de dialogar seriamente com esse mundo por forma a transformarmos a reflexão filosófica africana numa espécie de escuta e de busca de respostas ao grito, ao pranto dos povos africanos na difícil conjuntura geopolítica mundial e internacional hodierna.
(P). O senhor tem falado na importância do Djemberem, como unidade política e cultural de diálogo e produção de consenso na Guiné-Bissau.
- A razão armada, é fruto do desvio cultural produzido através da narração unilateral e errada do processo da luta de libertação nacional uma vez conquistada a independência da Guiné-Bissau. Ela foi apresentada, descrita, narrada como se tivesse sido exclusivamente um processo de luta armada de libertação nacional. Fora assim enfatizado o aspecto militar da luta de libertação deixando de lado as primeiras três dimensões prioritárias dessa luta: a dimensão da resistência política, da resistência económica e da resistência cultural. Assim foi-se militarizando o conceito de combatente da liberdade da Pátria, esquecendo que até o próprio líder da Pátria, Amílcar Cabral, nunca foi um militar. Isso foi uma autêntica traição aos ideais da luta de libertação que culminou com a exclusão de todos aqueles elementos que lutaram com outros meios nessa mesma causa de luta de libertação. O que tinha originado a convocação do famoso Congresso de Cassacá, isto é a militarização da luta, voltou a ganhar terreno primeiro nas consciências das pessoas através da criação de mitos de guerreiros, os “macho men” e a por conseguinte a militarização do Estado a partir sobretudo do Golpe de Estado de 1980 à esta parte. Os militares passaram a ter a primazia sobre o país e o povo; e isto é uma autêntica aberração e heresia em relação aos princípios que nortearam o processo da luta de libertação nacional. Isso provocou a masculinização primeiro da consciência social e por conseguinte do poder do Estado como tal. As violências porque estamos a passar nestes primeiros quarenta anos de independência são portanto indicativas dessa militarização da razão social e cultural e do poder do Estado. Os militares como tais nesse caso, não possuem nenhum monopólio da violência, já que ela se tornou um “corpus social” um hábito normal nas relações entre as pessoas e entre as instituições do Estado. Descartamos assim do nosso hábito social, tudo quanto é relativo ao feminino primordial na história, isto é, a dimensão da cura, da atenção, da gratuidade, da mansidão, da humildade, enfim tudo aquilo que faz parte do horizonte do humano profundo na sua versão pascaliana de “esprit de finesse”. Impera assim uma cultura do “anti-irmão”, da “antropologia da cólera” até chegarmos nestes anos naquilo que se pode definir unicamente como “política” de mera “democratização da imbecilidade humana tout court”. Para sair desse túnel é urgente voltarmos a valorizar a dimensão do feminino na história. Neste sentido se coloca também a revalorização da nossa ancestral cultura do Djemberém para fazer face aos imensos problemas de paz, reconciliação e de desenvolvimento integral dos nossos povos. Isso porém só pode acontecer num país que se pensa constantemente. O que não é o caso da Guiné-Bissau neste momento. Vivemos mais de mimetismo dos aspectos negativos do mundo euronorteocidental. Não há um pensar o amanhã com a própria cabeça e a partir do próprio contexto. Não nos entra na cabeça que como dizia Cabral um dirigente, um militante do povo deve estudar sempre, possuir espírito de aprofundamento da realidade do povo, sermos capazes de “pensar para melhor agir e agir muito para melhor pensar” como continuar a escavar os poços para a sede de amanhã ou do dia seguinte. Há que questionar e revalorizar a nossa cultura e a nossa Tradição transformando-a numa utopia mobilizadora do presente e numa memória vigilante no processo do desenvolvimento do nosso país e dos nossos povos.
(P). Como o senhor avalia filosoficamente a questão dos imigrantes africanos hoje na Europa?
- A questão dos imigrantes africanos na Europa hoje é simplesmente problemática, para não dizer grave, pelo simples facto que em todo o planeta e sobretudo na Europa, neste caso, a imigração se tornou sinónimo de guerra com tudo quanto isso implica, os seus cortejos de serviços de segurança, militares, polícias, arames farpados, agentes humanitários etc. O pior é que a guerra foi sempre a tirania do anonimado: ninguém a quis, mas acontece; não há um Responsável primário, mas sim “figurantes” (os traficantes, os que guiam as pequenas embarcações do migrantes etc). Vamos tentado resolver tudo com a lógica da guerra e da simplificação sistemática de factos e questões dramáticos e bem complexos; é o fim da cultura da hospitalidade que é uma característica fundamental da pessoa humana: somos hóspedes por natureza, por um breve período de tempo na face da terra onde chegamos todos como imigrantes e hóspedes em trânsito por este mundo fora: somos hóspedes e imigrantes primeiro no ventre das nossas mães e depois na comunidade de nascimento que nos recebe, educa e no ocaso da nossa vida nos sepulta; e por último somos hóspedes da terra na qual seremos sepultados: a vida são os outros na co-responsabilidade da hospitalidade entre imigrantes em constante trânsito vital na história. A própria África está a faltar esse mesmo princípio, já que a questão da imigração evidencia também a grave crise de valores tradicionais porque passa o continente africano neste momento.
(P). O desenvolvimento é uma forma de não envolvimento com o mundo que nos cerca. Como o senhor pensa essa questão na África?
- Como em todas as sociedades humanas também em África a questão do desenvolvimento é crucial. É o maior desafio para as nossas sociedades hoje em dia, quarenta, cinquenta anos após a proclamação das independências políticas dos nossos países. A única consideração que quero fazer é que o desenvolvimento para nós tem que significar, antes de mais, procurar saber e compreender profundamente o que se passa na mente e no mais profundo da caverna do coração das pessoas; em segundo lugar pensar formas e percursos humanamente mais apropriados para conseguir, como disse o Dom Hélder Câmara, “por de pé um homem, uma mulher e uma criança” e poder assim garantir o seu desenvolvimento integral. Ora para ser integral o desenvolvimento tem que abranger todos os homens, todas as mulheres e todas as crianças e abranger também todo o homem, toda a mulher e toda a criança como nos recorda o Papa Paulo VI. O desenvolvimento chama por isso em causa a questão da cultura: não se pode pretender de erradicar a cultura dum povo para implantar o desenvolvimento “made in Europe ou no Japão” como preconiza Axelle Kabou, no seu livro “E se a África recusasse o desenvolvimento”. Onde é que as pessoas irão buscar motivações para esse desenvolvimento: para ir para a frente, voltar para trás de vez em quando, se não na cultura ou melhor nos valores da sua cultura!
Arranjos: Manuel Bernardo Gondola
Em Maputo.