Por An’tshé
Era meio-dia quando de repente parei. Não porque quis parar, mas porque fui forçado. Parecia haver uma cola grudada no meu chinelo, companheiro fiel a mais de um ano e nove meses.
Coloridos, e bonitos pesava mais do que os outros chinelos, não por erro de fabrico, mas pela quantidade de arrames e pregos incorporados nele que garantiam ainda a sua utilidade. Suas variadas cores eram resultado dos inúmeros chantes e remendos que sofrera ao longo dos anos.
Não podendo mover-me, finalmente descalcei diante daquela arreia fina abrasante aquecida pelo sol escaldante das doze horas e pouco. Agachei-me para averiguar o que estava se passando e pasme! Não tinha cola, íman ou coisa parecida, e muito menos entalado nalguma coisa, e nada justificava a imobilidade dos mesmos.
Atónito, e me questionava que estava se passando, mas sem resposta. Depois de ter olhado de um e do outro lado para certificar-me que ninguém passava ou reparava, peguei-os pelas orelhas e puxei-os… puxei mesmo.
No início, puxei com força moderada para não rebentar as fivelas, mas logo fiquei furioso quando permanecia imóvel, e puxei, puxei outra vez bem puxado sem se importar se rebentaria ou não, e foi ai que ouvi-o falar, e por instantes causou-me mini paragem cardíaca e susto de arrepiar a pele e os cabelos.
– Estas a me puxar assim porquê? ...
Mal poderia acreditar… aquele chinelo velho estava falando comigo?
– Ham?! Retruquei com muita incredulidade, medo e perplexidade
– Sim, você não tem vergonha de me puxar assim? Respondeu o chinelo com convicção
Mal pude responder quando o ouvi continuar …. – Desde ano passado que estas me usando, não agradeces porquê? Me deita-la sócio…
Ainda perplexo pensei: Já li na Bíblia animal falar com seu dono para lhe salvar da morte, agora esse chinelo que está me matraqueando assim? Que fiz eu para merecer tamanha humilhação? Isso é malavi¹!!!… pensei naquela altura e respondi desesperadamente no preconceito de um bom africano tradicionalista:
– Você, não me lavacatshari ouviu? ... respirei fundo e continuei – Se te mandaram que esse malavi volte para pessoa que te mandou! …rematei.
– Assim estas ameaçar quem? Não vês razão mesmo? Me deitar senhor… compra outro chinelo. Respondeu o chinelo à medida… calma e serenamente.
– Está bem, desculpa!... tremendo, comecei a negociar, porque aquele sol era demais.
– Ok, pelo menos me acompanhe pela última vez até lá na banca para eu poder comprar outro, depois vou deitar-te.
Concordou o chinelo e começamos andar… Passamos a primeira banca, apreciei alguns pares mas não comprei. Passamos a segunda e a terceira e não comprei, e quando íamos para quarta banca ouvi… – Qual a cena mesmo? Já compraste muitas coisa e chinelo nada, vou te fazer shits² eu! Disse o chinelo furioso.
Como falasse com voz alta, fiquei em apuros implorando… parecia maluco pela rua falando para baixo – Relaxa-la djó³, relaxa, acabou dinheiro e preciso tirar ali na ATM da Shoprite… enrolei o irracional.
Fiquei na fila, esperando quando do nada houve um tumulto…
- Para o chão, para o chão, se não vou matar… dizia um assaltante que acabava de roubar numa loja adjacente. E naquele todo reboliço e bagunça, o assaltante fugiu deixando cada um de nós apanhando seus pertences que rolavam espalhados pelo chão.
Como má notícia corre rápido, a imprensa já estava lá em directo fazendo a reconstituição do crime em 5G na forma de reportagem. Na verdade, contaram um filme que nem nós que presenciamos vimos, só sei que o jornalista, no fim da reportagem, falou assim
– E o larápio, nas pressas escapuliu-se ileso deixando para trás estes chinelos… esperamos que com essa prova a policia saia ao encalço deste bandido.
Aqueles chinelos nas mãos do jornalista eram meus! A deformação na parte frontal dos chinelos parecia estarem rindo da minha cara. E eu ali permaneci no chão fingindo estar a procura de meus sapatos… até gritei… – Meus sapatos aqui…
Levantei, descalço, internamente envergonhado, caminhei e peguei um táxi sem querer, e jurei: nunca mais usarei um chinelo até o ponto de me falar.
Nota: Não sei se você se identificou ou não. Não sei que tipo de chinelo você tem usado e abusado, mas um dia a revolta virá e bem caro pagarás.
¹Malavi – acontecimento misterioso, que geralmente traz azar a pessoa que viu.
² Shits – palavra Inglesa que significa “merda” usada idiomaticamente no português informal
³ Djó – calão para se referir a amigo.
(Recebido por email)