Por Miguel Luís
Enquanto o mundo não acaba, em Cabo Delgado continuam a morrer, Senhor Presidente. Não estou em condições de lhe pedir muito, mas o povo precisa de lhe ouvir como pai da nação. A tua voz e a tua vontade podem pelo menos garantir que os cidadãos não são tratados desumanamente por quem tem o dever de protegê-los.
Um barulho qualquer acordou-me e acabei atravessando o dia e, entretanto, continuo aqui sentado à espera que as palavras me caiam às mãos para expressar sei lá o quê. A cortina branca a esconder o vazio que deixou o vidro que parti ontem a olhar-me como quem diz
não te preocupes que não te chegará muito frio
está imóvel. O que será o frio que vou sentir nesta noite para o frio que corre nos corpos nus dos que acabaram de morrer de covid-19 há menos de um segundo! Nós, sempre com a mania de que sofremos mais que meio mundo. Nós, sempre sem tempo para pensar nos que vivem os verdadeiros horrores nos tantos Cabos Delgados desta vida! Sempre sem tempo para um mísero diálogo sincero com a pessoa que sofre bem ao lado, que está ao lado de nós.
Agora recordo-me do ruído que me tirou da cama. Foi o barulho da tampa de esgoto pisada pela roda do carro que passa que me acordou; e vejo na minha mesa um caderno com cara azul, uma vela branca, um fósforo, uma caneta preta e um relógio de pulso a girar os ponteiros que fingem que controlam o tempo. Mas não controlam nada. Tudo depende do que passa nesta cabeça. Tudo só acaba quando ela desligar. Falando em desligar, o mundo anda nestes dias num falso desligamento. Anda por aí muita gente que nem o preço de suar para ter um pão sabe, pronta a convencer a quem lhe apareça à frente que está a viver os piores dias da sua vida, está a viver a quarentena!
quarentena qual quê?
Não continuamos a violentarmos por aí nos Facebooks desta vida? Em Cabo Delgado continua a morrer-se e isso não é brincadeira. Se não são esses covardes sem rosto que se alimentam do sangue das pessoas que decapitam e se aquecem nas casas de gente que não precisa de mais nenhum empurrão para sofrer, alguns dos que juraram lutar pela pátria e proteger os cidadãos vão-lhes dando milhares de chambocos sem nenhuma justificação plausível.
são todos insurgentes, esses!
Enquanto me aparecem aos olhos as imagens de cidadãos a serem torturados pelas forças de Defesa e Segurança, lembro-me de uma professora a me dar reguadas nas mãos que se iam alternando para aguentar a dor. Uma dorzinha de nada foi suficiente para me encher os olhos de lágrimas numa sala de madeira e zinco que chupava metade do sol como um mosquito esfomeado a sugar o sangue de uma criança que duas semanas depois soçobrará no leito de um hospital onde a médica apenas lhe receitará o único fármaco que os nossos hospitais públicos têm:
Paracetamol!
Agora me dou conta que estendido sobre esta mesa está também um papel quase verdinho, vale vinte euros, está dobrado ao meio e me olha como um xicuembo silencioso e desprezível pronto a executar uns pobres passos de Mapico. Penso, agora, enquanto passo a mão na tanta barba que me cobre o rosto, quantas famílias moçambicanas verão a sua situação miserável piorar com esse bichinho que nos aprisiona nas nossas casas!
Enquanto o mundo não acaba, em Cabo Delgado continuam a morrer, Senhor Presidente. Não estou em condições de lhe pedir muito, mas o povo precisa de lhe ouvir como pai da nação. A tua voz certamente que não parará as mortes, mas nos assegurará que não estamos órfãos. A tua voz e a tua vontade podem pelo menos garantir que os cidadãos não são tratados desumanamente por quem tem o dever de protegê-los.
quem cala consente!
Não diz nada, Senhor Presidente? Violações involuntárias que matam não deixam de ser violações! O povo que morre em Cabo Delgado é também seu patrão. Sem dúvida não é assim a dor dos que vivem na pele aquelas merdas, mas este é o pus que a minha borbulha vai expelindo no meio deste papel para que quando a luz estiver desligada possa sonhar. Que o carro volte a passar e faça barulho sobre a tampa do esgoto e acorde todos os meus sonhos.
PÚBLICO(Lisboa) – 26.04.2020