Assinalou-se hoje, em todo o mundo, o dia da Liberdade de Imprensa. Em Moçambique organizações que congregam jornalistas falam de mais um ano negro no que ao desempenho da actividade diz respeito
A Liberdade de Imprensa é um Direito Constitucional que entrou na Lei Fundamental a partir de 1990. No seu artigo 48, a Constituição que abriu as portas à democracia no país estabelece no seu nº 3 que “A liberdade de imprensa compreende, nomeadamente, a liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e do sigilo profissional e o direito de criar jornais, publicações e outros meios de difusão”.
Trinta anos depois do estabelecimento deste direito, de ano a ano, as organizações da classe jornalística olham com preocupação a situação para o clima do exercício profissional no país. Este ano, a avaliação não foge a regra. O Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ) diz que o clima está mau para o exercício profissional.
“Há situações que tem estado a ocorrer que atentam à liberdade de imprensa e de expressão no país. Por esse facto, nós olhamos com muita preocupação a situação deste ano” disse Eduardo Constantino, Secretário-geral do SNJ.
Para Constantino, a deterioração do clima para o exercício profissional do jornalismo começou há quase um ano, e aponta as Forças de Defesa e Segurança (FDS), como a face mais visível da coartação das liberdades.
“Nós vínhamos caminhando perfeitamente na liberdade de imprensa, embora houvesse situações esporádicas que atentassem contra a liberdade, mas desde finais, se não meados do ano passado, temos estado a constatar que acções que impedem o exercício pleno da liberdade de imprensa. Temos estado a verificar acções intimidatórias contra os jornalistas, e isso nos preocupa” explicou.
“Apagão da Informação”
No seu relatório deste ano, o MISA Moçambique retracta, de forma detalhada, os nódulos que afectam o exercício profissional dos jornalistas.
Intitulado Apagão de Informação e as Perseguições contra Jornalistas em Cabo Delgado” o relatório do MISA indica que “O espaço de actuação dos media tornou-se cada vez mais reduzido, com um forte controlo do partido no poder sobre os órgãos públicos e alguns privados, a cada ano que passa”.
O relatório aponta 2020 como um ano negro no que a liberdade de imprensa diz respeito, como consequência de uma sucessão de casos que vem desde os anos anteriores.
“No ano 2019, foram 20 casos de violação da Liberdade de Imprensa, caracterizados por detenções, agressões, ameaças contra jornalistas, roubos e vandalização de órgãos de comunicação social. Os casos mais evidentes foram as mediáticas detenções de Amade Abubacar, a 5 de Janeiro de 2019, e de Germano Adriano, em Fevereiro do mesmo ano. Ambos foram acusados, sem provas, de vários crimes, nomeadamente instigação pública a um crime com uso de meios informáticos a favor do grupo terrorista que tem vindo a fazer ataques em Cabo Delgado, crimes de instigação à desobediência colectiva, injúria contra agentes da força pública, associação para delinquir, crime contra a organização do Estado, e crime contra a ordem e tranquilidade públicas” indica o relatório.
Dos factos registados este ano, como tendo impacto na limitação da liberdade de imprensa, Ernesto Nhanale, director executivo do MISA Moçambique aponta como um dos casos, o decreto presidencial sobre o Estado de Emergência.
“Define-se a comunicação social como um sector fundamental mas, ao mesmo tempo, diz-se que o jornalista deve depender de fontes oficiais. Estamos a dizer que, sobre a COVID-19 temos que ouvir uma única voz” apontou.
“Dizer uma única voz não é o mesmo que dizer única direcção. Única direcção representa objectivos iguais, mas dizer única voz estamos a dizer que é ditadura” sentenciou.
Ranking em queda
Desde 2013 Moçambique anda num ciclo de quadas sucessivas no ranking anual publicado pela organização repórteres sem fronteiras.
No relatório deste ano, Moçambique classificou-se na posição 104, menos uma, comparativamente ao índice do ano passado.
Nos últimos oito anos, a melhor posição que moçambique registou foi em 2013. Entre os 180 países avaliados o país esteve na posição 73 e desde então, já caiu 30 lugares.
“Estamos com medo”
Falar do conflito entre o jornalismo e das limitações impostas ao exercício profissional em Cabo Delgado, Amad Abubacar é figura incontornável nos últimos anos.
Depois de ter passado várias semanas detido pelas Forças de Defesa e Segurança, viria a ser liberto, na sequência de ondas de pressão nacional e internacional e levado a um julgamento que até hoje ainda não tem desfecho.
Instado a caracterizar o clima do exercício profissional naquela região do país, em particular, disse que o medo domina a classe, de tal forma que o profissionalismo passa ao lado.
“Nós estamos num nível não satisfatório. Se formos a ver o que nós como jornalistas da província escrevemos, não vai além da informação.Ignoramos a notícia e reportamos as informações, e, como sabe, as pessoas não precisam de informações, mas sim, de notícias” disse Abubacar.
“Mostrem o que está errado”
O Gabinete de Informação (GABINFO) é o braço estatal que zela pela regulação e licenciamento da media no país.
Este órgão diz estar atento e respeita as leituras feitas, e desafia os jornalistas a colocarem as cartas na mesa e juntos discutir o que está mal.
“Nós recebemos, de facto, a percepção dos jornalistas e questionamos: Quais são os pontos que se podem colocar à mesa, que é para serem analisados” disse Emília Moiane, directora do Gabinfo.
“O Governo é um actor, a comunicação social é outro actor. Temos espaço para discutir e avaliar o que é que, efectivamente, está mal. E nós perguntamos, o que é que efectivamente está acontecer para que os jornalistas ou os homens da comunicação social sintam que há pouca liberdade de imprensa em Moçambique” questionou, reconhecendo, no entanto, que há desafios, mas que no seu entender, não colocam em causa a liberdade.
“Os desafios existem, mas, a nossa posição é que estamos abertos para perceber das organizações, dos jornalistas e dos órgãos de comunicação social, aquilo que são os problemas e que possam ser resolvidos pelo Governo” frisou.
Analisar nas duas perspectivas
Tomás Vieira Mário, jornalista e presidente do Conselho Superior da Comunicação Social (CSCS), órgão de disciplina que tem também a responsabilidade de assegurar a independência dos meios de comunicação social, no exercício dos seus direitos, considera que, a questão da liberdade de imprensa deve ser vista, não só na perspectiva de direitos, mas também de responsabilidades.
Na perspectiva de legislação “o quadro político-legal mantêm-se, em termos formais, sério, robusto, contudo, na prática há desafios” avaliou Tomás Vieira Mário, apontando casos como pontos negros, a actuação de certos elementos das Forças de Defesa e Segurança, em províncias como Cabo Delgado.
Por outro lado, para Vieira Mário, a imprensa também deve olhar para dentro e corrigir o que está mal.
“Em termos da media há desafios grandes em termos de qualidade técnica-profissional e ética que é preciso melhorar” salientou.
O PAÍS – 03.05.2020