As aldeias queimadas e pilhadas deixam as populações sem recursos e à mercê dos atacantes
Só nesta semana, os radicais islâmicos decapitaram 11 pessoas no distrito de Macomia
LÁZARO MABUNDA CORRESPONDENTE EM MAPUTO
Até há três anos, Cabo Delgado era a província moçambicana do futuro. Com enormes reservas de hidrocarbonetos em exploração, era a província onde se erguiam luxuosas estâncias turísticas que hospedavam e realizavam eventos no contexto de exploração dos recursos naturais.
As elites políticas e empresariais procuravam terrenos e oportunidades de negócios. Ter um pedacinho de terra em Pemba ou Palma era um desafio por causa dos preços especulativos de venda ilegal. Jovens e adultos procuravam emprego e era difícil imaginar outro cenário que não o da oportunidade de emprego, negócio e circulação de divisas.
Então, em 4 de outubro de 2017, dezenas de jovens desconhecidos atacaram a vila da Mocímboa da Praia. Nem a população local nem o Governo deu importância de maior. Há anos que havia sinais, o Governo ignorara-os, alegando ser um “conflito interno dentro da religião muçulmana” e que “não iria intervir em assuntos internos de uma religião”.
Hoje, três anos depois, o dito “conflito de uma religião” transformou-se num problema de difícil solução. Os terroristas passaram a controlar grande parte da província de Cabo Delgado e as forças armadas são incapazes de travar o avanço de um inimigo que deixa um rasto de corpos despedaçados, casas e carros queimados, infraestruturas públicas e privadas destruídas e lojas e bens saqueados por onde quer que passe.
A província do futuro transformou-se num caos, o paraíso tornou-se infernal. Enquanto se procura explicar as origens, identificar os atores, os financiadores e as motivações, o grupo de fundamentalistas islâmicos ganha terreno, ocupa aldeias, localidades e postos administrativos da província.
AVANÇAR E TOMAR TERRENO
Depois de ataques esporádicos a aldeias desprotegidas ao longo de dois anos, desde março último, os insurgentes começaram a atacar as vilas sedes dos postos administrativos da província de Cabo Delgado. A primeira vila escolhida foi Mocímboa da Praia, o lugar onde começaram os ataques no outono de 2017. Os terroristas assaltaram uma posição militar e ocuparam a totalidade da vila. Dois dias depois, avançaram para a ocupação da sede do distrito de Quissanga. A 7 de abril, ocuparam a sede do distrito de Muidumbe.
A última sede do distrito atacada foi Macomia, o distrito mais importante do centro da província de Cabo Delgado. Desde março que há ataques semanais a diversas aldeias, localidades e postos administrativos da província. Dando prova da sua organização, no mesmo dia de ataque à vila de Macomia, os insurgentes assaltavam e ocupavam, à mesma hora, as sedes dos postos administrativos de Chai (a 45 km de Macomia) e Litamanda (a 52 km).
O ataque à sede do distrito de Macomia, nos dias 28, 29 e 30 de maio, foi até agora o mais destrutivo. Fontes locais relatam que foram encontrados em duas semanas seis corpos abandonados.
“Aqui (em Macomia) cada dia é encontrado um novo corpo. Ali perto do armazém da Escola Técnica foi encontrado um corpo, ao lado da escola de Nanga, outro corpo, e na zona de Napacala, ainda outro. Alguns tinham armas com munições, não se sabe de que parte [forças armas ou terroristas] se trata”, disse ao Expresso um dos comerciantes informais dali, que vende agora onde antes havia o mercado que foi queimado pelos terroristas.
Desde março que há ataques semanais a diversas aldeias, localidades e postos administrativos da província
Durante os três dias em que as populações se encontravam refugiadas nas matas, 35 crianças perderam-se das suas famílias e foram encontradas na aldeia de Moja, de onde foram levados para a cidade de Pemba pelas forças de defesa e segurança. Sabe-se que uma criança morreu no colo da mãe por falta de alimentos e de água nas matas onde se escondiam. Segundo relatos, houve mais três mortes em circunstâncias semelhantes, além de duas mulheres cujos partos correram mal pela falta de condições nos esconderijos.
Como tem sido hábito, o ataque a Macomia começou por volta das 4h da madrugada. A população foi acordada pelo troar das armas e, em pânico, fugiu para as matas juntamente com alguns militares.
“Os militares fugiram, alguns estavam connosco e outros tiraram o uniforme e enterraram as armas. Eu estive com um militar e acredito que tenha havido outros na mesma situação”, disse ao Expresso um dos cidadãos que esteve três dias refugiado no mato. Outra fonte conta que “estava numa zona chamada Namaga”, onde, no primeiro dia, se encontravam “dez militares e no segundo dia, oito”.
Os helicópteros chegaram por volta das 7h. Primeiro sobrevoaram a vila de Macomia e, mais tarde, começaram a disparar contra os insurgentes, que se escondiam entre a população, assim escapando às balas. O saque à vila começou ao pôr do sol, quando os helicópteros regressaram a Pemba. Os insurgentes saquearam os bens antes de queimarem os estabelecimentos informais do mercado, que acabou em cinzas.
TRÊS DIAS A DESTRUIR
Os insurgentes ficaram dois dias na vila, durante os quais queimaram e destruíram à vontade, apesar dos disparos dos helicópteros das forças armadas.
Quando se retiravam ao terceiro dia, de regresso à zona de Miangalewa, perto da aldeia Nova-Zambézia, onde se acredita existir uma base terrorista, caíram numa emboscada das forças armadas, que resultou na morte da maioria deles.
Depois do ataque a Macomia muitas pessoas deixaram a região fugindo para zonas seguras, mudando-se para a cidade de Pemba e para a província de Nampula.
No distrito de Macomia, todos os postos administrativos, incluindo a vila sede, já foram atacados pelos insurgentes. Ao longo desta semana, os radicais islâmicos atacaram as aldeias de Natugo 2 e Mitacata em Quiterajo-sede, distrito de Macomia, onde decapitaram 11 pessoas. Na quinta-feira, as forças armadas teriam bombardeado algumas bases dos insurgentes na zona de Mocímboa da Praia.
EXPRESSO(Lisboa) – 12.06.2020