Por Francisco Nota Moisés
Depois de obtermos algum dinheiro do malogrado Pollet, o missionário e antigo ancião de Murraça em Sofala, eu e os meus colegas, Chissano e Chipande, decidimos sair do campo de refugiados de Rutamba dias depois. Não tínhamos muita coisa a carregar para além de mantas e algumas roupinhas em sacolas. O machimbombo rural que devia passar por Rutamba às 6 horas só apareceu às 8 horas aquela manhã. Já estávamos expostos visto que o governo da Tanzânia não queria que saíssemos dali para depois fazer propaganda contra a Tanzânia.
Entrámos no machimbombo que continuou para Lindi que era o seu destino. Quando lá chegámos, a carreira para Dar Es Salaam já tinha partido e disse aos meus colegas: “não podemos ficar aqui até amanhã visto que a segurança tanzaniana vai nos prender e devolver a Rutamba e será mais difícil mais tarde tentarmos uma nova fuga.” Os meus colegas concordaram logo comigo e metemo-nos na estrada para Dar Es Salam, a algumas centenas de quilómetros de Lindi.
Andámos todo o dia sem comer nem beber sob um sol que podia derreter a pele do diabo. Era por volta das 20 horas quando chegámos a uma aldeia. Lá fomos a um restaurante rural, onde um velho, talvez o dono, nos disse, “oh vocês chegam muito tarde. Já fechamos. Mas sentem-se que eu logo acordo o meu cozinheiro para vos fazer jeito maneira. Vejo que vocês estão famintos.”
O velho foi atrás da palhota. Ouvimo-lo sussurrar alguma coisa ao seu cozinheiro que já estava na cama e depois veio-nos dizer para esperarmos. Mas não havia sinal de que alguma coisa estava a ser preparada na cozinha.
Chissano já sonecava. Eu e Chipande estivemos alertos sem falar para evitar falarmos em português ou sena que é uma língua forasteira e não tanzaniana.
Repentinamente, ouvimos a porta traseira abrir e três homens entraram e marcharam para nós e o seu comandante nos disse em Swahili e em voz de poucos amigos: “vocês violaram a lei da Tanzânia. Não sabem que não podem andar de qualquer maneira na Tanzânia que vive sob a ameaça de agressão portuguesa e dos bueiros? Mas durmam aqui e amanhã cedo podem irem vos apresentar ao régulo.”
Depois do chefe do grupo dizer aquilo, partiram sem se despedirem de nós ou nos prender, o que não seria fácil visto que nos éramos malandros e boxeiros como está no sangue dos senas. Mal que ouvimos a porta traseira fechar, eu disse aos meus colegas em português para o velho não perceber: “saiamos daqui. Aqueles malandros estarão de regresso e armados sem mais tardar param-nos e prendem.”
Chissano tentou dizer que passássemos a noite aí, mas Chipande lhe disse: “tu ficas se quiseres. Eu e Francisco continuamos.” Chissano compreendeu que seria perigoso nós continuarmos ali por mais tempo. Acordou-se logo, tendo o medo afugentado o sono dos seus olhos.
Depois de nos levantarmos, o velho, que estava sentado numa esteira na porta, tentou nos dizer para dormirmos aí e que não haveria nenhum problema. Chipande, que batera Armando Guebuza em Dar Es Salaam, pontapeou no velho que caiu e grunhiu quando a sua coluna embateu o chão, antes dele sair, eu saltar sobre o velho e Chissano nos seguir.
Lá fora estava bem escuro e a aldeia não tinha energia elétrica, o que favoreceu a nossa fuga. Metemo-nos a correr doidamente por 20 minutos antes de pararmos para respirarmos. Continuamos a andar em silêncio. Depois de alguns minutos ouvimos um camião que vinha atrás de nós. Deixamos a estrada e metemo-nos no mato onde camuflamos onde havia mangueiras e capim. Como por magia, o camião parou lá mesmo onde tínhamos deixado a estrada e ouvimos os nossos perseguidores a se perguntarem: “ondes foram estes rapazes?”
Enquanto permanecíamos quietos e eles não sabiam o que nos tinha acontecido, ouvimos um outro camião que vinha da direcção oposta e ia provavelmente a Lindi. Quando este outro camião chegou lá onde o camião que nos perseguia estava, ouvimos um dos nossos perseguidores a perguntar o condutor do doutro camião se tinha visto três rapazes. E o outro condutor disse que não tinha visto ninguém.
E um dos nossos perseguidores disse em voz de alta e aparentemente com a sua alma arrepiada : “hawa si vijana. Si watu. Ni majini. Mashetani (aqueles não são rapazes, não são humanos. Sou jinis. São demónios.”) Os nossos perseguidores se convenceram que éramos mesmo espíritos malignos. Tanto melhor para nós. Viraram o seu camião e regressaram à sua aldeia seguidos pelo camião que vinha do sentido contrário.
Depois que ouvirmos os ruídos dos dois camiões desaparecer do ar, metemo-nos na estrada mais uma vez e continuamos a andar quando uma cena misteriosa desfilou aos nossos olhos. Um homem alto, magro e curvado com o que parecia ser um montão de lenha na cabeça apareceu a nossa frente marchando em direção oposta. Quem iria buscar e sairia da mata com lenha aquela hora?
“Jambo, mzee (olá viva, oh mais velho),” saudamos o velho numa só viva voz. Ele virou-se para nós sem responder e continuou marchando em direção contrária à nossa e nós continuamos a marchar para a distante Dar Es Salaam sem esperança de lá chegarmos.
Depois de alguns dois minutos vimos o velhote aparecer outra vez à nossa frente. Cumprimentámos o velhote mais uma vez e ele comportou-se da mesma maneira como dantes, olhando para nós sem responder e continuou em sentido contrário.
Chissano, o filho duma curandeira de Caia, disse: “se virmos este homem outra vez não devemos cumprimenta-lhe ou dizer-lhe nada, se não continuará a aparecer. E quando o vimos aparecer em frente de nós pela terceira vez, não o cumprimentamos mais e ele desaparece de vez, o que marcou o fim do teatro inesperado. E nós não falámos dele aquela noite visto que falar dele seria como convoca-lo para regressar e se manifestar mais uma vez em frente de nós.
Depois de andarmos por um certo tempo, chegamos onde a estrada entra na mais grossa floresta do sul da Tanzânia onde todo o tipo de ruídos de aves e animais se ouviam. Tendo perdido o medo, entrámos na estrada adentro e passámos toda a noite a andar. A uma dada altura ouvimos porcos do mato grunhir que vinham a nossa direcção. Quando se aperceberam de nós, chocaram-se e amontoaram-se um em cima do outro antes de se levantarem e entrarem na floresta.
Depois daquilo, encontramo-nos cara a cara com quatro leões: dois machos com grandes jubas e duas fêmeas. Pararam com os seus olhos brilhando na escuridão e parámos também. Tirámos velhos jornais que tínhamos nas nossas sacolas com fósforos e acendemos os papéis, começamos agitar com as suas chamas acesas e avançar contra as bestas que ganharam medo e saltaram da estrada com ruídos que estremeceram a terra para a mata para continuarem a perseguir os suínos selvagens. E nós continuamos a marcha até que amanheceu e parámos à beira dum riacho onde havia uma ponte e decidimos desancar aí em vez de continuarmos na floresta no outro lado do riacho visto que as primeiras horas do dia são um tempo de muita actividade à procura de água e comida para feras como elefantes e leões.
Depois de descansarmos,, metemo-nos na estrada e minutos depois vimos frescos montões de cagadiços de elefantes e sabíamos logo que os imperadores da selva africana não estavam muito longe de nós, mas continuamos até que nos deparamos com eles. Não estavam interessados em nos fazer a guerra e nós nos encolhemos. Decidiram ir-se embora, mas um jovem macho virou-se e começou a correr contra nós e nos metemos atrás de grandes arvores. Quando não nos viu mais, decidiu correr para estar com o seu grupo.
Depois daquilo, continuámos com a nossa viagem. Pelas 9 horas, vimos uma carreira que vinha de Lindi para Dar Es Salaam, e eu, contra o conselho dos meus colegas, meti-me na estrada e acenei para ela parar. Parou e o condutor gritou para entrarmos. O resto da viagem para Dar Es Salaam correu muito bem e uma semana mais tarde chegámos a Nairobi, Quénia, onde continuamos com a nossa educação e lá vivi durante 17 anos, dois dos quais vividos na Suazilândia, à beira mesmo do covil do leão maputense.