No Norte da África Subsariana, as atuais práticas esclavagistas lembram as piores atrocidades coloniais
ANA FRANÇA
Pessoas açoitadas para trabalharem mais rápido, mulheres violadas, jovens vendidos a partir de jaulas. São factos deste milénio e acontecem em países como a Líbia, Mauritânia ou Níger. Cerca de 40 milhões de pessoas, segundo a Fundação Walk Free e a Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas, levam vidas de escravos, em quase tudo idênticas às daqueles que viveram no tempo dos homens cujas estátuas são hoje objeto de polémica.
Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 13 milhões de pessoas foram vendidas e trabalharam como escravos. Hoje são mais. A escravatura que nos habituámos a ver ilustrada em desenhos de homens negros aferrolhados uns aos outros ou amarrados a um tronco comum, dispostos em esteiras num mercado, não está confinada ao passado em todo o mundo.
A Mauritânia não é o país com mais escravos (essa triste distinção pertence à Índia, com cerca de 18 milhões em trabalho forçado), mas é o país onde uma maior percentagem da população vive amarrada à servidão, que é hereditária. São 15% a 20% de um total de 3,8 milhões de habitantes, segundo a organização SOS Esclaves. No Níger, serão mais de 600 mil, segundo a mais antiga associação antiescravatura do país, a Timidria (“solidariedade” no dialeto dos tuaregues, ancestrais donos de escravos).
A SOS Esclaves ajuda pessoas que fogem dos donos a construir uma vida financeiramente sustentável, acabando com a ligação de dependência que escravos e suas famílias mantêm, muitas vezes, com o “senhor”, ao ponto de pedirem para voltar depois de libertados.
RELATO ARREPIANTE
Esta organização fez chegar ao Expresso o testemunho de uma mulher que quis revelar apenas o seu primeiro nome, Moulkhar. Com 59 anos, uma vez livre tornou-se costureira. “A minha mãe trabalhava na mesma casa onde eu trabalhei, a minha avó materna tinha lá trabalhado. As minhas quatro filhas eram escravas comigo e duas são do filho mais velho do dono das terras, que ameaçava todos os dias decapitar-me se eu contasse a alguém que eram dele”, começa por contar esta mulher, ao telefone, através de uma tradutora. “De manhã à noite tratava do gado, das plantações, bebia apenas leite de cabra.
Antes de as nações europeias chegarem a África, já os árabes e berberes (de que fazem parte os nómadas tuaregues) tinham feito dos negros escravos. Assim continuou a ser durante o tempo do domínio francês, apesar de França ter proibido a venda de humanos, tanto no Níger como na Mauritânia. “A escravatura, nestes dois países em especial, é profundamente étnica e muito antiga. Uma pessoa libertada, por ser negra ou harantin [negros árabes], será sempre identificada como descendente de escravos. As oportunidades de mudar de vida são mesmo muito reduzidas, até porque a educação secular é vedada aos escravos”, explica ao Expresso o professor de História Bruce Hall, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, especialista no estudo das diferenças étnicas e das castas na região subsariana do Sahel. “A casta de uma pessoa marca a continuidade da sua inferioridade ao longo dos séculos. A não ser que migrem, nunca serão apenas um negro ou uma negra a tentar melhorar a vida numa cidade.”
Na Mauritânia, a escravatura foi legal até 1981, mas só em novembro de 2011 o primeiro dono de escravos foi condenado por posse e venda de humanos. Permaneceu preso apenas quatro meses. No Níger, o flagelo só começou a ser criminalizado em 2003 e são tão poucos os casos levados a tribunal que o nome de Hadijatou Mani, escrava sexual que processou o dono e venceu, é citado em todo o lado. “O grande problema no Níger é particularmente com as mulheres e meninas. A venda de filhas de escravas para escravas sexuais é constante, comum, normal”, assegura Hall. A Fundação Walk Free refere que 71% dos escravos em todo o mundo são mulheres.
Há três anos, a CNN foi à Líbia mostrar os leilões de pessoas: “Alguém precisa de um homem forte para cavar?”, ouve-se uma voz perguntar. É do homem que está a vender os jovens presos em celas nos centros de detenção para migrantes. Quando vemos imagens de homens arrumados em espinha no porão de veleiros antigos a caminho do Brasil, é difícil não lembrar o que os traficantes de pessoas fazem hoje quando colocam migrantes em barcos e os lançam ao Mediterrâneo.
O Ocidente não está vacinado contra o fenómeno da escravatura: a Fundação Walk Free encontrou provas de trabalhos forçados em garagens de reparação e lavagem de automóveis no Reino Unido ou em casas de diplomatas na Austrália. Ou seja, há escravatura em países onde pessoas saem à rua para questionar o legado dos homens a quem foram erguidas estátuas.
África não é um continente estanque a essa revolta. “As gerações mais jovens de árabes não querem ser conotadas com a escravidão. Quem manda está com medo, sabe que isto não é um movimento de força negra que vá ficar lá ao longe”, diz Hall
EXPRESSO(Lisboa) – 19.06.2020