Por Francisco Nota Moisés
Depois de três dias de marcha forçada da base da Renamo em Chire na Zambézia, um episódio infernal para mim que não estava acostumado a marchas longas das 5 as 17 cada dia pela margem direita do Chire no seu percurso para desaguar no Zambeze em Chindio, a ponta mais sul da província de Tete, o comandante Inácio, chefe da segurança na Renamo na Zambézia, que comandava o grupo armado que me protegia na minha incursão para Sofala, percebeu que eu tinha dificuldades em andar.
Vendo que eu coxeava, ele decidiu numa ideia: arranjar uma almadia para ele e eu e dois soldados bem fardados e armados que ele escolheu que deviam estar connosco enquanto outros continuariam na marcha por terra pela margem do Chire para Megaza Entrámos na almadia com dois remadores experimentados, que não faziam mais do que controlar a canoa visto que a corrente do rio a propelava para o sul.
Mas a viagem na almadia era problemática visto que o rio onde do lado leste é Moçambique e do lado oeste é o Malawi, pertence ao Malawi segundo a decisão dos imperialistas portugueses e britânicos que decidiram as fronteiras entre Moçambique e a Niassalândia, pelo que viajando numa almadia no meio do rio com soldados rebeldes armados com armas de guerra era uma violação territorial do espaço malawiano.
Nem a policia do Malawi nem a sua tropa, se estava lá alguma à beira do rio, se atreveria abrir fogo contra nos. "Eles conhecem o poderio militar da Renamo," disse-me o comandante Inácio, "eles sabem como a Renamo fustigou a Frelimo. Tenho tido encontros com as autoridades malawianas. Somos a autoridade administrativa no lado de Moçambique visto que controlamos todas as fronteiras da Zambézia e Tete com país deles."
Enquanto a almadia fazia o percurso para Megaza, havia gente no lado do Malawi -- mulheres e suas filhas a buscar água, homens a tomar banho, mas sem gente nenhuma no lado de Moçambique com mato bem grosso. "Algumas daquelas pessoas que você vê no Malawi são moçambicanas," disse-me o comandante Inácio.
Abordamos Megaza ao mesmo tempo que a unidade que marchava por terra à beira do Chire antes de nos dirigimos à base de Megaza, uma pequena base a escassos metros do rio Chire onde passamos a tarde e pernoitamos. sem jamais sairmos visto que Megaza estava altamente minada e o perigo de minas era imenso e não se podia brincar e fazer andanças na mata de Megaza .
Muito cedo na manha seguinte, atravessamos o Chire para Tete, e aterramos num lugar a escassos metros da fronteira sul do Malawi. Os rapazes que remavam as almadias e o velhote que os guiava, gritando ordens em Sena, a tribo desta região na Zambézia, em Tete e no vizinho Malawi, são senas, conheciam bem o rio aqui e sabiam exactamente onde iriamos aterrar para não entrarmos no Malawi com homens da tropa rebelde com armas de guerra, ak-47s, metralhadoras, bazucas e granadas.
As almadias encostaram uma machamba com palhotas dos seus donos adentro. Uns rapazes da família fugiram ao nos verem visto que as pessoas em geral detestavam o costume dos rebeldes de obrigá-las a tomar parte das suas bagagens por umas certas distâncias. Havia duas mulheres lá mas o homem da família não estava lá aquele momento.
Enquanto os soldados estavam sentados a descansar, eu entrei em conversa vivida com as mulheres que estiveram encantadas em ver um homem bem vestido e limpo como eu a conversar com elas na sua língua. As mulheres se lamentaram que o lado delas e dos malawianos não tinha lenha enquanto havia muita lenha em Megaza onde não podiam ir por causa de minas. Uma das mulheres exclamou, "papa," disse-me, "alguém só pode tentar ir buscar lenha em Megaza, se quer perder pernas ou morrer numa mina lá. Como é típico de mulheres senas com a sua nthabualabua ou seja o dom de conversar sem se cansar, e eu também com o mesmo dom, falávamos e riamo-nos como se nos tivéssemos conhecido por um longo tempo ou como se elas fossem minhas comadres ou vizinhas.
O homem da família talvez o marido das duas mulheres veio mais tarde depois dos rapazes que tinham fugido de nos terem regressado sem os soldados ou as mulheres lhes ralhar por terem fugido quando nos viram entrar. Mas o homem, o pai deles, não achou graça que eles tivessem fugido e disse-lhes, "estes homens fazem muitos sacrifícios para nos libertarem. Vivíamos na prisão da aldeia comunal aqui. Agora estamos livres por causa de eles e ajudá-los a transportar as suas coisas por certas distâncias devia também ser parte do nosso sacrifício consentido."
Enquanto estivemos lá, pessoas das zonas mais a sul, passaram na picada entre as palhotas da residência com cargas de produtos agrícolas nas cabeças que iam vender no mercado no Malawi.
Depois dum descanso duma hora, ou de duas horas, continuamos com a nossa marcha na margem ocidental do Chire, que a partir da zona onde tínhamos descansado torna-se um rio moçambicano marcando a fronteira entre as províncias de Tete e da Zâmbia até desaguar no Zambeze em Chindio onde o Zambeze marca a fronteira entre as províncias da Zambézia e de Sofala.
Passamos o dia a marchar na zona pantanosa do Chire até mais tarde entramos na residência dum senhor muito amigável cuja esposa e filha cozeram comida deles para todos nos e a filha mais tarde preparou água para que eu tivesse banho atrás da sua residência em vez de ir-me arriscar na água do Chire a escassos metros da residência por medo de ser arrancado e carregado nas mandibulas dum crocodilo.
Passamos a noite aí e partimos na manhã do dia seguinte e atravessamos um dos braços do Chire para Inhangoma. Enfim, estive na minha terra natal depois de 21 anos de ausência em terras estrangeiras. Tivemos a refeição de meio-dia onde aterramos antes de partirmos para atravessar a ilha de Inhangoma para o Zambeze com a Vila de Mutarara ao norte.
Inhangoma que eu tinha conhecido como um lugar de desenvolvimento de grande vulto no tempo dos portugueses não era mais o mesmo lugar. Tudo em ruínas -- escolas, lojas, antigas estradas mortas com novas picadas abertas para evitar minas.
A libertação de Inhangoma da Frelimo cantava o feito de armas dos combatentes da Renamo que tinham expulso a Frelimo numa terra muito desfavorável à guerrilha -- uma planície de savana abaixo do nível do mar sem florestas nem matas e sem capim denso. Paramos na aldeia do régulo Nhaenca onde os homens entraram numa grande base para banharem e comer enquanto o comandante Inácio e eu ficámos na residência dum velho jovial à beira da base que nos serviu batata doce assada e peixe pedra (tilapia) cozida. Ele me contou como é que os frelimistas maltrataram o administrador português que encontraram no posto administrativo de Inhangoma que fizeram do seu moleque deles ate que eles próprios vieram a sair correr para Maputo quando a Renamo avançava e libertava a zona.
Depois de resumirmos a marcha passamos ao lado do antigo centro comercial de Traquino, que se tinha transformado em floresta depois da Renamo ter atacado os soldados da Frelimo que tinham tomado posição ali até que chegamos na aldeia do régulo Cassano por volta de nove horas de noite onde entramos numa residência onde havia um coxo que andava com ajuda duma bengala mais comprida do que ele e a quem perguntei se tinha perdido a sua perna na explosão duma mina. Disse-me que tinha sido mordido por uma víbora (cobra chipiri).
Cometemos um erro crasso naquela residência que viemos a regretar mais tarde enquanto apavorados como ratos ao miar dum gato. O comandante Inácio sem pedir permissão informou ao coxo passarmos a noite no quintal da residência. Amedrontado com homens com armas, o coxo não disse nada. Retirou-se e foi a uma palhota para informar a uma mulher lá que havia alguns homens armados no quintal que decidiram dormir aí.
Já estávamos deitados nas nossas esteiras e cobertos nas nossas mantas quando ouvimos um grito muito inusual duma voz a falar numa língua de espíritos e não em sena que é minha língua. O coxo veio para nos com uma ordem: "a mulher la dentro entrou numa transa e vos ordena a sair daqui sem mais tardar visto que o seu espírito não quer ver armas."
A estas palavras, reagimos como uma força sendo atacada por uma força inimiga. Levantamos, dobramos as esteiras e mantas e os soldados carregaram as suas bagagens e armas e saímos a correr sem argumentar e pedir que fossemos perdoados.
O preto sabe que não se argumenta com espíritos. Deixa lá o homem branco dizer que estas coisas de espíritos são asneiras.
Entramos numa residência vizinha onde desta vez o comandante Inácio teve a cortesia forçada de pedir ao homem da família aí para nos permitir para passarmos a noite no seu quintal, depois de dizer: "fomos expulsos da residência vizinha." O homem disse que não havia problema."
E lá pernoitamos sem problemas antes de puxarmos para o Zambeze na manhã do dia seguinte.