Província de Cabo Delgado é fustigada há anos pelo ramo regional do Daesh. População vive no medo
TEXTO E FOTOS LUÍS FONSECA/LUSA EM AFUNGI
Vistas de avião, as obras de construção do complexo industrial de liquefação de gás natural em Cabo Delgado erguem-se como uma ilha no meio de um manto esverdeado de terras virgens do Norte de Moçambique, território onde grassa terrorismo associado a grupos jiadistas. Quanto à segurança, porém, o recinto do maior investimento privado em África tem permanecido também quase como uma ilha, fora da mira dos grupos.
“Nós antes não víamos circular aviões grandes”, afirma Silvino Silvério, chefe do posto administrativo de Palma, sede do distrito homónimo da província de Cabo Delgado, ao saudar quem chega à nova aldeia de Quitunda. Além do novíssimo aeroporto, esta aldeia, desenhada a regra e esquadro, feita de raiz em dois anos, é a primeira obra acabada pelo megaprojeto de gás na península de Afungi. Nela já habitam 186 famílias (cerca de 1200 pessoas), transferidas de povoados dos terrenos de implantação do projeto. Novas fases de expansão estão previstas para acolher 556 famílias.
“Isto já era Quitunda. Aqui já havia população que fazia machambas”, nome dado às hortas. Mas no lugar de uma povoação rural de construções precárias há uma vila com infraestruturas (água, eletricidade, saneamento, acesso) como em mais lado nenhum da província. Centenas de casas espaçadas, centro de saúde, mesquitas, mercado, tudo parece ainda pintado de fresco. “Eu vivia numa casa de matope [mistura de barro e madeira] e nunca esperei vir a ter uma casa como esta”, de construção permanente, em alvenaria, diz em língua suaíli Fumassane Sumaile, 60 anos, chefe tradicional de Quitunda. Do que mais gosta? “De ter água”, refere, ao abrir a torneira no quintal.
Os sorrisos repetem-se em conversas a passo de corrida. O tempo é curto, porque o recinto de Afungi foi um dos principais focos moçambicanos de covid-19 em abril. Só no final de maio voltou a ser declarado seguro. Na primeira visita aberta depois da quase paralisação da área os protocolos são restritivos quanto a contactos, visitas e permanência. Quitunda fica para trás, com a população reunida nos quintais.
211 MIL DESLOCADOS
Num deles, Mwanaquela Ramazane, 28 anos, rodeada de crianças, trança fios de coco para fazer uma cesta. Ao lado há música alta, de jovens que esticaram uma lona sobre estacas e improvisaram uma sala de cinema. Há gente no mercado, há quem passeie pelas ruas.
Mesmo num retrato rápido, percebe-se que Quitunda contrasta com a crise humanitária que se vive a poucos quilómetros em redor, com dezenas de aldeias no meio do mato saqueadas, vazias e terras abandonadas após dois anos e meio de ataques armados que fizeram pelo menos 700 mortos (algumas organizações estimam que o número possa ser superior a mil) e 211 mil deslocados em direção a Pemba e Nampula, mais a sul. Uma violência que ainda ninguém soube explicar totalmente, mas que dava sinais antes de irromper. Dirigentes religiosos muçulmanos de Cabo Delgado emitiram comunicados, em 2016, a alertar para a presença de estrangeiros com ideias radicais nas suas mesquitas, que recrutavam os mais influenciáveis para acampamentos no mato. Três anos depois, o braço da África Oriental do Estado Islâmico começou a reivindicar os ataques e a ocupação momentânea de vilas de Cabo Delgado. A Agência das Nações Unidas para a Droga e Crime Organizado (UNODC) em Moçambique sustenta que a religião é um meio para servir o crime organizado, ligado, por exemplo, ao tráfico de heroína, cuja produção triplicou em 10 anos e procura nova costa de desembarque.
Fifa Falume, 26 anos, tremeu quando os rebeldes invadiram Mocímboa da Praia ao som de bombas e metralhadoras, na madrugada de 23 de março (voltaram a fazê-lo no final de junho). Temeu o pior quando “os insurgentes” lhe pediram água à porta de casa. “Disse à minha sobrinha que íamos morrer”, recorda. Ganhou coragem, levou-lhes água. Beberam, trocaram palavras azedas, ela calou-se, eles seguiram. O som de disparos e explosões continuava ao fundo. De manhã, “depois de rezarem, despediram-se. Disseram: ‘Podem ficar sossegados, estamos a ir, só vínhamos visitar-vos’ e saíram”, relata Fifa, que recorda outro comentário deles: “Os vossos dirigentes nem estão aí convosco.”
“O INIMIGO FICOU”
Hoje, Fifa faz parte dos milhares de deslocados internos que deixaram tudo o que tinham e vivem acolhidos por amigos ou familiares. Ela e a sobrinha rumaram a Pemba, capital provincial, tal como Eurico Manuel, 47 anos, com mulher, 13 filhos e cinco netos. Encontrou abrigo numa casa que já acolhia 18 pessoas, refugiadas sob uma cobertura esquálida. Há dificuldade em ter comida. Cada qual tenta todos os dias arranjar biscates. “Sentimo-nos abandonados”, diz Eurico, tarefeiro de serviços públicos, que não sabe quando regressará a Mocímboa.
Em Namialo, província de Nampula, o número de deslocados cresce e inclui muitas crianças com a infância desfeita a fugir do terror que engoliu aldeias como Miangalewa, a 6 de abril. Amade Estevão, 55 anos, foi apanhado lá, “na guerra”, e conta que “o inimigo ficou” na sua terra. No dia 8, ainda escondido, diz que “já não conseguia suportar” a fome. Com a ajuda de outras pessoas, fugiu no dia seguinte até Xai, povoação na única estrada asfaltada que liga o norte ao sul de Cabo Delgado.
No mesmo grupo, Mualiba Matuta, refugiado de Muidumbe, lamenta que os corpos nem sequer cheguem às campas. “Ficam dessa forma”, abandonados, esquartejados. São relatos de semanas de aumento das incursões armadas, desde março. As forças de defesa e segurança têm sido parcas em informação. Ainda assim, anunciaram no final de maio um contra-ataque que, somado a outros, terá resultado no abate de 150 rebeldes e alguns cabecilhas.
Ronan Bescond, diretor-geral da petrolífera Total em Moçambique, reage: “A situação de insegurança não está diretamente ligada ao projeto de gás”, que continua a avançar, para iniciar a exploração em 2024. “Há um ambiente seguro que prevalece” no recinto de construção e em redor e “o Governo colocou recursos de forma a mitigar a situação e proteger a população”. No recinto de construção são visíveis áreas vedadas com arame farpado e torres onde vigias controlam o que se passa em redor, além de acenarem a quem passa. Manter a segurança “é um valor absolutamente primordial” para o projeto. “Temos um protocolo com o Ministério do Interior e o Ministério da Defesa que será ajustado dependendo do avanço das atividades.” O protocolo abrange “um plano de base comunitária. O projeto assume a responsabilidade de associar estas forças de segurança na área para proteger as comunidades locais e regionais”, acrescenta Bescond.
Apesar de parecer uma ilha de segurança, o recinto não está livre de sustos e baixas. A 21 de fevereiro de 2019 houve um morto e seis feridos quando viaturas com pessoal ligado à obra foram apanhadas em dois ataques armados. Fonte do consórcio viria a referir, dias depois, que as incursões não visavam o empreendimento: o grupo passou no local errado à hora errada. Noutras ocasiões, como em fevereiro de 2019 e em novembro último, ataques em aldeias próximas paralisaram os trabalhos em Afungi alguns dias. No fim, a ordem seria sempre para retomar a obra. Como hoje, com garantias de criação de milhares de postos de trabalho, atenção às questões humanitárias e sociais e investimento na economia local.
CINCO MIL OVOS POR DIA
Bescond afirma que em janeiro havia 5500 moçambicanos a trabalhar no projeto. Entre 2022 e 2023, no pico da atividade de construção, haverá 14 mil trabalhadores e espera-se que 5500 continuem a ser moçambicanos. Terminada a construção, em 2024, o consórcio prevê criar 1500 empregos de longa duração. “Se tivermos mão de obra moçambicana qualificada para o que precisamos, não vamos trazê-la de fora”, garante.
Há outras atividades em curso. Um fundo estuda atividades para melhorar o bem-estar das comunidades locais. Por exemplo, identificar “oportunidade para negócios locais e formação”. Outro projeto quer gerar empregos na área do agronegócio. E a petrolífera ajudou uma empresa a tornar-se na maior produtora de ovos (cinco mil por dia) na capital provincial. Foram aplicados 699 milhões de dólares (€619 milhões) em aquisições a empresas moçambicanas até ao segundo trimestre de 2020. “Investimos muito tempo no conteúdo local”, garante Bescond. A cidade do gás, associada ao empreendimento, começa a ser construída em 2021, com capacidade para albergar 150 mil pessoas, atraídas pelas oportunidades criadas em Afungi.
Na avaliação de 2018, meses depois de iniciadas as obras, as organizações da sociedade civil moçambicana deram nota positiva ao dossiê de reassentamento, apesar das preocupações relativas à deslocalização de comunidades piscatórias e à disponibilização de terras para cultivo. Nem tudo é perfeito, mas o consórcio de petrolíferas e o Estado moçambicano garantem dar ouvidos às preocupações e estar abertos ao escrutínio: cerca de 200 colaboradores e várias organizações trabalham em assuntos ligados à transferência de comunidades e tem havido encontros.
Na nova Quitunda, Vasco Valente, diretor local dos Serviços de Saúde e Ação Social, abre as portas do reluzente centro de saúde. “Até já temos gabinete de dentista”, diz ao mostrar a cadeira rodeada de equipamento de estomatologia. Resta saber se os sorrisos vão alastrar ao resto da província, onde uma crise humanitária e o terrorismo marcam as vidas de muitos milhares de habitantes de Cabo Delgado.
EXPRESSO(Lisboa) – 05.07.2020