O essencial para perceber as razões pelas quais o Sahel corre o risco de se transformar num ‘Jiadistão’
Por Rui Cardoso
O golpe de Estado de terça- -feira, 18 de agosto, no Mali, que levou à prisão do Presidente Ibrahim Boubacar Keïta e do primeiro-ministro Boubou Cissé e à demissão do Governo e do Parlamento, corresponde aos anseios populares (corrupção e falta de iniciativa política), mas pode criar um vazio no combate aos jiadistas no país e na região.
Daí a rapidez com que a França condenou o golpe, em consonância com a ONU e a CEDEAO (Comunidade Económica de Estados da África Ocidental).
AK-47
Há mais armas per capita do que telefones no Sahel (Mauritânia, Mali, Níger, Chade e Bukina Faso).
Enraizou-se aquilo a que o ex-embaixador francês em Bamako (Mali) Nicolas Normand chamou “o sindicalismo da kalashnikov”, a obtenção de vantagens através da intimidação, seja por conta própria, seja ao serviço de senhores da guerra ou narcotraficantes. ARGÉLIA
Uma das consequências da guerra civil (1991-2002) foi a proliferação de grupos armados, alguns aproveitando a permeabilidade do deserto.
As circunstâncias da morte do líder histórico da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI) põem em questão o papel do país no combate aos jiadistas. Como foi possível Abdelmalik Droukdel e seus guarda-costas percorrerem 2000 quilómetros desde as montanhas da Kabilia (onde mantinha grupos residuais de guerrilha) até Kidal (Mali), onde foi eliminado por tropas francesas a 3 de junho?
Numa altura em que o Governo enfrenta manifestações pró-democracia e o ataque francês expôs a fragilidade da AQMI, é possível que a contemporização de Argel relativamente aos jiadistas no seu território possa mudar.
ESTADO
É o grande ausente no Sahel. Como predomina a economia paralela, a fiscalidade é residual (1,5% do PIB ou menos) e não paga escolas, hospitais, esquadras ou tribunais. Sem um aparelho judicial capaz de dirimir conflitos, estes tendem a transformar-se em antagonismos violentos, sobretudo se envolveram comunidades diferentes como os dogon e os fula no Mali.
Neste país há 38 polícias por 100 mil habitantes quando deveriam ser, pelo menos, 250. Onde o Estado só intervém episodicamente, as populações viram-se para as ONG (se houver condições de segurança) para obter serviços públicos.
Armam-se e preferem fazer acordos com os jiadistas, vistos como menos corruptos do que o exército. O jiadismo toma como alvo os símbolos da autoridade do Estado, dos professores aos polícias, gerando um vazio que depois procura ocupar.
POBREZA
É o combustível da violência. Os conflitos ancestrais entre pastores e agricultores, entre nómadas e sedentários, são amplificados pelas mudanças climáticas e pela falta de uma gestão da água e da terra. O aquecimento na região tem sido 1,5 vezes superior à média mundial, e a fome, crónica há 10 anos, tem sido agravada pela pandemia.
Para os jovens de aldeias remotas, as armas, as motos, os 4x4 e o dinheiro dos jiadistas são uma tentação. Aqui, onde o salário médio não passa dos €60, a colocação de um engenho explosivo à beira da estrada é paga a €450, subindo para €3000 se detonar à passagem de um veículo militar.
FULA
Esta etnia maioritariamente muçulmana tem expressão do Sahel à Guiné. Como tem havido adesões de dirigentes ou grupos ao jiadismo, toma-se a parte pelo todo e passou a dizer-se que os fulas “se radicalizaram”.
As milícias nas quais os governos do Mali ou do Burkina Faso delegam poderes de polícia fazem pagar aldeias fula inteiras por atentados jiadistas, o que empurra mais fulas para os braços destes. Quando não são o exército e a polícia a alimentar este círculo vicioso.
JIADISMO
Há uma miríade de organizações, umas nascidas do independentismo tuaregue, outras da guerra civil argelina ou do islão político (GSIM, Katiba Macina ou al-Murabitin que remete para os almorávidas medievais), sem esquecer as filiais locais da Al-Qaeda (AQMI) ou do Daesh (EIGS) que lutam pela supremacia ideológica e militar.
A AQMI, historicamente ligada à guerrilha argelina dos anos 90, é mais aberta a negociações. Sem prejuízo das divergências, coexistem e vivem em simbiose com o crime organizado (droga, armas, extorsão e raptos).
Daí que se fale num narco-jiadismo. Algum sucesso das tropas francesas e americanas no Mali (como a eliminação do líder histórico da AQMI) tem como efeito perverso a deslocação dos grupos jiadistas para a Costa do Marfim ou o Níger, onde recentemente foram mortos oito trabalhadores de ajuda humanitária com requintes sádicos.
TROPA
Só há duas forças credíveis: os franceses da Operação Barkhane (cinco mil homens), apoiados por satélites, drones e forças especiais norte-americanas pertencentes ao AFRICOM (Comando dos Estados Unidos para África), e o exército do Chade, que há três anos conteve a expansão para norte do grupo Boko Haram.
As forças armadas e policiais são escassas, ineficientes e muitas vezes retaliam sobre os civis ou delegam em milícias locais. As forças internacionais, como o G5 Sahel e a Missão da ONU (MINUSMA), têm-se transformado em ímanes para ataques dos grupos armados.
EXPRESSO(Lisboa) – 21.08.2020
NOTA: Haverá muita diferença com o que se passa em Cabo Delgado?
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE