Filomena Raimundo, 33 anos, viaja de Maputo para Quelimane, no centro de Moçambique, e sente um "frio na barriga" ao passar na região reconvertida em zona de guerra, no centro de Moçambique.
É a parte mais arriscada da viagem de 1.500 quilómetros e cerca de 20 horas.
Filomena carrega “lembranças difíceis” de amigos que ainda este ano sobreviveram, no leito de hospital, após ataques de atiradores à beira das estradas onde já foram assassinadas, pelo menos, 30 pessoas desde agosto de 2019.
A ativista social atravessou Muxungué e Mutindiri, dois troços da estrada nacional número 1 (N1), que cruza Moçambique de norte a sul.
Há nomes de que o resto do mundo nunca ouviu falar, mas que passam a ser conhecidos pela força das balas.
Agora estica as pernas na paragem do Inchope, mas ainda vai ter de passar por Matenga, no limite entre Nhamatanda e Gorongosa, a área mais atingida pelos ataques armados que voltaram a flagelar as províncias de Manica e Sofala.
“Ao saber que temos de passar numa zona onde frequentemente estão a acontecer ataques, sinto mesmo um frio na barriga", reitera antes de entrar no último troço da viagem.
A viagem de Filomena atravessa os três troços da N1 alvo de emboscadas a autocarros e viaturas de carga desde agosto de 2019, violência que a Polícia atribui à autoproclamada Junta Militar da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), um grupo de dissidentes do maior partido da oposição que mantém entrincheirado naquela zona um número desconhecido de guerrilheiros.
O grupo liderado por Mariano Nhongo assume alguns ataques, rejeita outros, sem que até hoje tenha clarificado o que pretende desde que rejeitou o acordo de paz de 2019 e a liderança de Ossufo Momade à frente da Renamo.
A vaga de violência que perdura foi desencadeada a 06 de agosto do ano passado, depois de formalizado o acordo entre o Governo e a Renamo, contestado pelos guerrilheiros dissidentes, que alegadamente reclamam melhores condições de desarmamento.
A Junta mantém a ameaça de continuar a metralhar autoridades e civis ao mesmo tempo que tem fechado portas às tentativas de mediação.
“É muito perigoso” atravessar a região, descreve à Lusa Lourenço Frechauti, ao volante do seu camião, por considerar sempre ser um potencial alvo do grupo atacante, apesar da forte presença de tropas do Governo.
O camionista relata um cenário de guerra, com carcaças queimadas na berma da estrada, incluindo uma viatura de patrulha das Forças de Defesa e Segurança incendiada pelos atacantes, várias posições militares montadas ao longo da via e a permanente ameaça de emboscadas dos dissidentes.
“É pesado e doloroso” o ambiente na estrada, acrescenta.
Além do medo em relação a ataques, é preciso parar para “dar água” ou “dar refresco” - expressão que significa entregar dinheiro -, de maneira a "dar moral” às tropas governamentais para “conseguir passar à vontade”.
As Forças de Defesa e Segurança reativaram em janeiro as colunas de escoltas obrigatórias a viaturas civis na N1, mais a sul de Inchope, no troço Muda Serração-Muxungué, para repelir os ataques de homens armados.
Várias posições policiais e acampamentos com viaturas de patrulha foram montados no troço Muda Serração-Muxungué, tal como entre Inchope e Gorongosa, a norte, onde na semana passada oito autocarros de passageiros escoltados pelas forças policiais foram metralhados.
“Sinto muito medo e não há muita segurança” ao percorrer a estrada, disse à Lusa Nicola Júnior, motorista de autocarro na rota Chimoio-Quelimane.
O motorista passou na localidade de Matenga, quando regressava da capital da Zambézia, Quelimane, poucas horas depois de cinco autocarros terem sido atacados, no domingo.
“Estou com medo de voltar para Quelimane”, acrescentou Nicola Júnior, que observou que os sucessivos ataques retraem os passageiros: na última viagem levou apenas oito pessoas para uma viatura com lotação de 30 lugares.
O camionista Jocilou Semende não usa as rotas agora alvo de ataques com frequência, mas já ponderou não voltar à estrada por um tempo, quando perdeu um colega durante um ataque na estrada nacional N7, que liga Moçambique à Zâmbia e Maláui.
“O Governo devia ajudar-nos, devia tentar aproximar as partes para saber o que está a acontecer”, apelou.
Já Alberto Simone, um ajudante de camião, que descreve os ataques como sendo graves, estranha as sucessivas incursões armadas em zonas próximas as posições das Forças de Defesa e Segurança.
“Os ataques são recorrentes, não se sabe se são realmente os homens da Renamo ou da Frente de Libertação de Moçambique [Frelimo, forças governamentais], porque aparecem, geralmente, homens civis naqueles locais de ataques”, próximo a posições militares, disse à Lusa.
“Os ataques estão sempre a acontecer. Todos os dias. Só que alguns não chegam à imprensa” afirmou.
Enquanto a incerteza continua, Filomena Raimundo agarra-se à sua fé para encontrar coragem e passar o último pedaço de estrada, onde o ronco de viaturas é, muitas vezes, intercalado com rajadas de fuzis de assalto, AK-47.
LUSA – 30.09.2020