Por Marcos Neves
Se olharmos para as letras com tanta atenção que elas perdem os sons que têm, o que encontramos?
O meu filho mais novo ainda não sabe ler, mas gosta de apontar para as letras. Para ele, as letras são ainda apenas riscos e rabiscos. Tentei fazer como ele. Olhei com muita atenção para as letras maiúsculas. Olhei com tanta atenção e durante tanto tempo que comecei a delirar. Afaste-se — ou salte para dentro deste jogo.
Olho com atenção para o A. O que vejo? Uma tenda? Uma casa? Com aquela trave ali no meio, penso no sótão mesmo por baixo do telhado, onde crianças brincam com bonecos.
Um desses bonecos é um camelo que sobe pela parede, nas mãos do meu filho. As duas bossas lembram-me o B, vagaroso, cheio de água, em busca do próximo oásis.
Já o C lembra-nos um homem velho e curvado, sábio e feliz, a pedir uma bengala.
Se olharmos para o D de cima, vemos um piano com teclas sumidas. Quem o irá tocar?
Ora, os dedos rápidos, tão rápidos que não os vemos todos, são a letra E, a tocar nas teclas do piano que ainda agora encontrámos, enquanto o camelo continua a subir pela parede.
Rodopiamos e estamos agora num filme de aventuras. Com esforço, vemos um revólver no F, com o gatilho ali no meio, enquanto o vilão se aproxima e o coração bate mais depressa.
Entretanto, alguém deu uma bengala ao velho, que está sentado a ver o filme. O velho curvado com uma bengala é o G — ou será que nessa letra vemos antes uma boca que se fecha?
Ah, o H! É um corredor visto de cima, com uma porta do meio. Mas se o tentarmos desenhar deitado, muito longo, estendido até ao horizonte, como se fosse uma rua imensa, as duas traves encontram-se no infinito e acabamos com um A.
A letra mais simples: um traço e vemos o I. Quando está sentado leva uma pinta na cabeça. Já desde o Império Romano que olhamos para a letra e também vemos um 1.
Quando o I dá um pontapé para a esquerda, transforma-se num J, pendurado no ar numa fotografia de arte marcial. (Em dia de cinema, também pode ser um gancho para pendurarmos o casaco.)
O J continua a dar pontapés neste filme absurdo. Agora acertou no H, partiu-lhe a trave da direita e transformou-o num K.
Virou-se então para o I, que caiu sentado, a fingir-se um L.
A violenta letra continua a olhar em redor e vê uma mesa. Num gesto preciso parte-lhe o ampo e a mesa fica feita num M.
Mesmo ali ao lado, na ordem alfabética, está o N, que me lembra um papel dobrado em três ou então um acordeão.
No belo e redondo O vejo, enfim, um círculo, um zero, um planeta — ou talvez os lábios feitos num beijo.
Já o P parece um martelo ou talvez uma pá. Será que a uso para desenterrar um tesouro?
O interessante Q lembra-me um O que nasceu com cauda. Ou um círculo feito a correr, com um risco em excesso.
O R parece estar a fazer sapateado, a dançar neste absurdo filme feito só de letras. Só falta imaginar o chapéu na cabeça, levantado ao ritmo da música.
Pois o S será uma cobra sibilante a deslizar pelo alfabeto, talvez a engolir o próprio rabo, num belo Q — mas também pode ser um I que, desta vez, levou um murro de cada lado (o J continua ao murro).
Chegados ao T, vemos um martelo? Uma cruz? Um carimbo ao contrário? Uma estrada que chega ao fim? (Ainda não.)
Antes do fim da estrada, que vem aí, há o U, em forma de taça ou de braços estendidos à espera do momento do abraço.
Se o U se apertar um pouco fica num V, que parece dois braços erguidos ou então duas pernas estendidas na areia, vistas de cima. Talvez também um sulco na terra onde semeamos. Se ficar cansado, pega em duas bengalas e transforma-se no M.
O duplo V é mesmo isso: uma letra que se duplica, como se a víssemos bêbados, e fica assim: W. Ora, também pode ser um M que foi levado pelo vento e ficou de pernas para o ar.
Chegámos a um cruzamento, ao local do tesouro, ao V que se vê ao espelho. Chegámos ao X, mas ainda não chegámos ao fim.
Já esta nova letra vangloria-se de ter ido à Grécia e parece um caminho que se bifurca: Y. Tem até dois nomes. Não ficaria mal dizermos que é uma árvore de dois ramos. Também pode ser uma fisga encontrada pelas crianças escondidas no sótão do A.
Num gesto rápido, inesperado, o J ataca o N, que cai no chão e fica feito no Z. Agora sim: chegámos ao fim.
(Crónica no Sapo 24.)