Em meados dos anos 80 do século passado, a diplomacia portuguesa já só procurava uma saída airosa para reconhecer a integração de Timor-Leste na Indonésia. Mas um almoço secreto em Lisboa, na qual participou o então primeiro-ministro, Mário Soares, virou a posição de Lisboa do avesso. A história foi contada pela candidata presidencial Ana Gomes ao jornalista do DN João Pedro Henriques, numa longa entrevista de vida agora editada no livro Ana Gomes: A Vida e o Mundo, da editora Palimpsesto. O DN pré-publica esse capítulo.
Ana Gomes com Xanana Gusmão em Jacarta em abril de 1999, ano em que os timorenses escolheram em referendo a via da independência© Charles Dharapak
Deixe-me só clarificar. O Governo dessa altura, chefiado por Mário Soares e tendo Jaime Gama como ministro dos Negócios Estrangeiros, estava a negociar uma forma de se reconhecer a jurisdição da Indonésia sobre Timor-Leste?
Sim, e isso seria feito através de um acordo no quadro da ONU que reconhecia que Timor-Leste se tinha integrado na Indonésia. E depois haveria eleições indonésias onde isso seria ratificado democraticamente pelo povo de Timor-Leste, que votaria nessas eleições. E depois Portugal e a ONU diriam ao mundo: "Pronto, OK, está resolvida a questão."
Só que o Presidente Eanes não estava muito pelos ajustes...
Não, não estava, mas também não podia fazer muito. A política externa era conduzida pelo Governo, constitucionalmente. Mas ia reunindo toda a informação. E ia mantendo contacto com os timorenses. Nessa altura só em Belém se recebiam os representantes timorenses, veja lá bem! O José Ramos-Horta [na altura porta-voz no exterior da Resistência timorense, Nobel da Paz em 1996 e, depois da independência de Timor-Leste, ministro dos Negócios Estrangeiros timorense, primeiro-ministro e Presidente da República] veio de Nova Iorque a Lisboa e cá ninguém o recebia, nem sequer no MNE. Só foi recebido na Presidência da República. Pediu para ser recebido em Belém e o Presidente Eanes mandou o António ir recebê-lo. Aliás, o Presidente Ramos-Horta conta muita vez, divertido, a história: o António levou-o a jantar ao Tágide e ele, Ramos-Horta, já se imaginava a lavar pratos, porque não tinha dinheiro para pagar o jantar. Pagou o António e obviamente que pagou do bolso dele: em Belém, com o general Eanes, não se metiam despesas na conta da Presidência! Enfim, o Presidente Eanes estava céptico quanto àquela solução mas não a ponto de a poder inviabilizar. E eu também. E, de repente, ocorre uma mudança brutal, um desenvolvimento fortuito que muda tudo.
O que foi essa coisa fortuita que mudou tudo?
De repente, vem a Portugal, em finais de 1985, o bispo D. Ximenes Belo [timorense, que de 1983 a 2002 foi, primeiro, administrador apostólico de Díli e, depois, bispo de Díli; Nobel da Paz em 1996]. E o bispo Belo, que sucedera a D. Martinho da Costa Lopes, até tinha o ónus de a sua nomeação ter sido aceite pelos indonésios [D. Martinho fora na prática expulso pelos indonésios], portanto havia muitas suspeitas se ele não era pró-indonésio. A certa altura temos a informação, via Vaticano, de que o bispo Belo vem a Lisboa e que vai ficar na residência do núncio apostólico [embaixador do Vaticano], discretamente. De facto, clandestinamente, para os indonésios não perceberem que ele cá tinha vindo. Estamos em Novembro de 1985, no final da presidência do general Eanes, em plena pré-campanha das presidenciais, quando o primeiro-ministro Soares se candidata à Presidência da República. O núncio organizou um almoço na Nunciatura, para o qual tinham convidado o primeiro-ministro e o MNE. E perguntaram-nos se o Presidente da República queria ir ou designar alguém. O Presidente designou o chefe da Casa Civil, Dr. Caldeira Guimarães, e ele lá foi. Lembro-me, como se fosse hoje, de o Caldeira Guimarães vir excitadíssimo do almoço e entrar no meu gabinete e dizer: "Filha, venha cá, tem que ouvir isto! Oiça, foi extraordinário! Estava lá o Dr. Soares, estava espantado com o que o bispo Belo contava. E não é que o bispo Belo veio dizer que o povo está com a guerrilha! Que a repressão é feroz e que toda a gente está com a Fretilin [partido timorense formado em Setembro de 1974. Na clandestinidade a partir da invasão indonésia de Timor, em Dezembro de 1975, foi a principal organização civil de combate ao jugo indonésio].
O Dr. Soares estava banzado! E perguntava: "Mas a Fretilin não são os vermelhos [comunistas]?". E o bispo respondia: 'Quais vermelhos! São o povo, são o povo!'" Enfim, o Dr. Soares saiu abalado, porque de repente vira o bispo Ximenes Belo, que até era suposto ser pró-indonésio, a dizer que a guerrilha era o povo, que a repressão indonésia era feroz e que havia um sentimento popular de revolta total e que não aceitavam a integração na Indonésia, de maneira nenhuma. O Dr. Soares estava desconcertado. Ele até então pensava que Timor era um problema de unfinished business da herança colonial que o tempo resolveria e que aquilo da Fretilin eram uns poucos obsoletos comunistas. Acho que o Dr. Soares teve então uma reacção genuinamente democrática perante aquilo que ouvira. Já estava em campanha para ser Presidente da República e não podia dar-se ao luxo de fazer menos do que o general Eanes em matéria de defesa de Timor, sobretudo depois daquele encontro. Aquilo bateu fundo no Dr. Soares. Aliás, anos mais tarde conversei com ele sobre isto e ele confirmou-mo. Ele chegou a Belém em Março de 1986. Mas entretanto as conversações luso-indonésias estavam no final. E já havia um projecto de declaração conjunta, rubricada em Nova Iorque pelos negociadores portugueses e indonésios sob a égide do secretário-geral da ONU, sobre o processo para aferir a absorção do território pela Indonésia.
Pequeno parênteses: nessa altura, o primeiro-ministro já era Cavaco Silva e o ministro dos Negócios Estrangeiros era Pedro Pires de Miranda.
Mas continua tudo na mesma linha, como se não tivesse havido aquele almoço com o bispo Ximenes Belo. Em Março de 1986 vou para Genebra e começo a trabalhar na área dos direitos humanos. A ideia era assinar a versão final da tal declaração conjunta em Julho ou Agosto de 86, para se aproveitarem as eleições indonésias do ano seguinte para os timorenses legitimarem este entendimento democraticamente. O processo acabaria com uma resolução das Nações Unidas reconhecendo que Timor estava integrado na Indonésia. Mas na Presidência da República já está, entretanto, o Dr. Mário Soares. E ele está a ver a telegrafia diplomática e diz: "Alto e pára o baile!" Convoca uma reunião do Conselho de Estado, no final de Julho de 1986, exclusivamente sobre Timor-Leste. Nessa reunião, o Dr. Soares diz que só aceita o tal projecto de declaração conjunta luso-indonésia se ela prever que, nas tais eleições indonésias do ano seguinte, os timorenses sejam perguntados especificamente sobre se aceitavam ou não a integração de Timor na Indonésia.
É isso que sai do Conselho de Estado. Os negociadores, portugueses e indonésios, ficam de cabeça perdida! Os indonésios obviamente não queriam nada daquilo e dizem - com razão, diga-se - que os portugueses não são sérios. E batem com a porta, interrompem as conversações em Nova Iorque.
Como sabe disso?
Nessa altura eu estava já na Missão Permanente de Portugal junto da ONU em Genebra e lançámos a nossa candidatura à Comissão dos Direitos Humanos [CDH] da ONU. De Nova Iorque, a nossa Missão retransmite-nos muita informação sobre as conversações relativamente a Timor-Leste que se desenrolavam no quadro da ONU. E de Lisboa tinha-nos sido mandada a informação sobre o Conselho de Estado. Um dia, entrei no gabinete do Lobinho - nome carinhoso que, entre amigos, chamávamos ao embaixador António Costa Lobo - e digo-lhe que não podemos falar sobre direitos humanos na CDH e esquecer as nossas responsabilidades sobre Timor. Até aí Portugal não falava sobre Timor. Quem tomava a iniciativa de levantar o problema de Timor na CDH eram as ONG. Portugal limitava-se a reagir, explicando que não tinha controle de facto sobre o território, era apenas potência administrante de jure. O Lobinho está de acordo comigo e começa-me a dar gás. Em Fevereiro de 1987 apresentamos a candidatura do país à CDH. E há um ponto sobre autodeterminação. O embaixador Costa Lobo começa a mandar telegramas para Lisboa, a pedir instruções sobre o que dizer sobre Timor-Leste, e Lisboa nicles, não responde. O ministro era o Petroleiro.
Ana Gomes, quem era o Petroleiro?
Era o ministro Pedro Pires de Miranda, era assim que era conhecido no MNE, porque vinha dos petróleos. Era um tipo encantador, ele e a mulher foram sempre muito simpáticos comigo e com o António. Mais tarde, encontrávamo-nos muito ali pelas nossas bandas, eles tinham casa perto de nós, em Almoçageme... E o outro, o secretário de Estado, era o Cacilheiro, o comandante Azevedo Soares [Cacilheiro porque tinha sido comandante da Armada], também muito afável. E era velho amigo do António Costa Lobo, o que foi a nossa sorte. O embaixador continuava a mandar telegramas e do MNE em Lisboa nem ai nem ui: não tinham posição. Aí, o António Costa Lobo escreve o texto de discurso para a Comissão dos Direitos Humanos, no qual diz que Portugal não aceita que as eleições indonésias em Abril de 1987 fossem de alguma maneira instrumento de reconhecimento da integração de Timor-Leste na Indonésia. Diz que a Indonésia era responsável pelos direitos humanos e diz que o facto de o direito à autodeterminação estar a ser violado implica todo um cortejo de outras violações dos direitos humanos, já que o direito à autodeterminação é o primeiro dos direitos humanos. É um texto magnífico, cuja versão manuscrita por ele ainda há tempos encontrei entre os meus papéis. Um texto que ele manda para Lisboa com a indicação de que, na falta de instruções, este era o discurso que se propunha fazer no ponto da agenda sobre autodeterminação. Ao mesmo tempo, telefona ao seu amigo comandante Azevedo Soares e ele dá-lhe o OK. Esse discurso foi chave! Mudou a actuação externa portuguesa relativamente a Timor-Leste.
Como é que os indonésios respondem?
Estonteados. E, claro, acusando Portugal de dar o dito por não dito. Com alguma razão, visto o processo do lado deles, porque até àquele Conselho de Estado de Julho de 1986, promovido pelo Presidente Mário Soares, Portugal tinha, de facto, estado a negociar a utilização das eleições indonésias de Abril de 1987 para selar a integração de Timor-Leste na Indonésia. Já tinham batido com a porta às negociações, quando os negociadores tinham informado, privadamente, no quadro das conversações sob a égide do secretário-geral da ONU, dos resultados daquele Conselho de Estado. Mas o assumir disto publicamente por Portugal, como resultava daquele discurso do embaixador de Portugal na ONU em Genebra, em Fevereiro de 1987, foi determinante para uma viragem indonésia. A partir daí, pouco depois, a Indonésia estava a bater à porta do secretário-geral, a dizer que queria voltar às negociações. E é isso que Pérez de Cuellar traz na agenda quando vem a Lisboa em Abril de 1987. Aquele texto do embaixador Costa Lobo muda realmente a nossa atitude política, que era, até então, passiva. Muitos, no MNE e nos sucessivos governos, achavam que Timor era um assunto que o tempo resolveria...
Mas o OK do secretário de Estado foi meramente verbal?
Não, foi por escrito. O embaixador mandou o projecto de discurso por escrito e a resposta do secretário de Estado veio por escrito. O embaixador Costa Lobo nunca ia fazer aquilo se não tivesse as instruções por escrito. Nós então fomos eleitos para a CDH e passámos a estar todos os dias pró-activos, na linha da frente, a espingardar por Timor-Leste. Quando vem a Portugal em Abril de 1987, o Pérez de Cuellar [peruano, secretário-geral da ONU de 1 de Janeiro de 1982 a 31 de Dezembro de 1991], sendo Presidente Mário Soares e primeiro-ministro Cavaco Silva, o António Valente, um grande diplomata que dirigia o departamento do MNE que seguia Timor-Leste e toda a região África/Ásia, solicitado a dar sugestões para o que poderia discutir-se numa nova fase de negociações com a Indonésia, dá a ideia ao Governo de se propor enviar uma missão parlamentar portuguesa a Timor-Leste, mas agora num outro quadro, perfeitamente respeitador da nossa defesa do direito à autodeterminação de Timor-Leste: não já para reconhecer a integração, mas para avaliar da real situação em que vivia o povo timorense. O projecto dessa missão começa a ser posto em marcha, mas acaba a dar com os burrinhos na água. Há uma equipa diplomática, integrada pelo Manuel Moreira de Andrade e pelo Francisco Ribeiro Telles, que vai a Timor, com autorização indonésia, para preparar a ida da dita missão parlamentar. E eles percebem que aquilo está a ferro e fogo. Fazem um relatório para a Assembleia da República e esse relatório enche de medo muitos deputados, que percebem que os timorenses vão aproveitar a visita da missão para se manifestar e fazer trinta por uma linha. E depois a AR agarra-se àquele pretexto de os indonésios não deixarem a Jill Jolife [jornalista australiana] acompanhar a missão parlamentar para cancelar a coisa. Mas, estou convencida, a razão de fundo é que eles tinham medo de lá ir, porque perceberam de repente que aquilo ia ser explosivo e lhes ia explodir na cara. Entretanto, nós trabalhávamos intensamente em Genebra para fazer um relator da Comissão de Direitos Humanos da ONU ir a Timor. E conseguimos! O professor Koojmans, holandês, está em Díli quando há o massacre de Santa Cruz [11 de Novembro de 1991]. E quem vai com ele é o Tamrat Samuel, eritreu, um alto funcionário da ONU, fundamental desde aí no processo da independência de Timor. Foi ele, depois, que foi ao julgamento do Xanana em Jacarta e que trouxe cá para fora o manuscrito da defesa do Xanana, que eu traduzi e ajudei a fazer publicar no The Guardian, em Londres.
DN(Lisboa) – 15.11.2020