Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola
Eu tive o primeiro contacto com a Obra do Aimé Césaire creio, que pela primeira vez cerca de uns [15] anos atrás. Ele chamou-me muita atenção; a forma como ele descrevia o colonialismo, e a forma como ele relacionava os conceitos, que ele utilizava para compreender essa violência, dentro duma lógica onde a Europa é vista como a grande civilização, por um lado, a modernidade, o iluminismo, mas a outra face desse sistema é a violência brutal, contundente praticada na África e em outros países, ou regiões.
Dialogar com o texto de César, para mim foi algo incrível eu acho, que Césaire tem muito para nós compreendermos o que é por exemplo; o Brasil, os Estados Unidos, o Haiti…, de hoje e… tanto a chaga do colonialismo ainda abertas nos países africanos, destarte como os desdobramentos e as consequências disso em países como; Brasil, ou em diversas locais da América-Latina.
Vou avisando, que vou tentar ser o mais acessível possível, já que, o texto Aimé Césaire é uma chave importantíssima para compreendermos o contexto actual, e ver como que todo o [mito] da civilização ocidental tem o seu lado obscuro, o seu lado perverso, que é o sistema brutal do colonialismo, a escravidão e o epistemecídio, ou seja, toda a [destruição] do conhecimento e das práticas tradições de origem dessas comunidades.
E, eu gostaria se vocês me dão licença de apresentar primeiro o contexto em que o autor desse «Discurso» poderoso se insere. Aimé Cesaire é um poeta, intelectual e político incrível e muito pouco conhecido entre nós [Moçambique]. Aimé Césaire, nasceu no Nordeste da Martinica, se localiza na região da América Central. Território da Martinica é considerado um Departamento ultramarino francês, ou seja, um território francês fora da Metrópole, e actualmente tem estatuto de Região administrativa.
A Martinica, foi invadida pelos franceses em 16[35] século [XVII], que a partir daí, promoveram o processo de massacre, e em função dos povos originários. Até 19[46] século [XX], a Martinica ainda tinha status de Colónia francesa, produzindo cana-de-açúcar, café e cacau.
Com massacre e expulsão dos povos originários do território, quem é que poderia exercer massivamente o trabalho forçado? Entram em cena os povos africanos, que foram sequestrados do seu Continente e levados à força como prisioneiros a Ilha, consolidando o projecto económico do colonizador sendo, destarte actuamente a maior parte da população da Martinica têm sua origem africana.
Aimé Césaire, nascido Julho de 19[13], filho de costureira e de um pequeno funcionário, portanto, esse período em que ele nasceu ainda era um período colonial. Vai continuar seus estudos em París [França], e é lá em París em contacto com outros estudantes africanos, que ele [descobre] progressivamente, que há uma identidade africana profundamente negada, repelida na Martinica. Em París, Césaire se encontra com a sua identidade africana, do mesmo modo, que começa se conscientizar, sobre a situação colonial da Martinica.
Em 19[34], Césaire juntamente com outros estudantes antilhanos, goaneses e africanos fundaram o Jornal chamado «O Estudante Negro» e…, pela primeira vez, cunham o termo «Negritude». Esse termo foi criado em reacção à opressão da colonização francesa, tendo como objectivo rejeitar o projecto de [assimilação] cultural francesa, e também, rejeitar a desvalorização de África e da cultura, que desde então Aíme Césaire passou a honrar.
O projecto de «Negritude» de Aíme Césaire era muito mais cultural do que político, pelo menos no iniciou. Ele retorna a Martinica, já casada com uma martinicana, e… é lá em seu território inicia uma luta pela valorização da cultura africana. Juntamente com sua esposa, funda outra Revista «Tropical», a Revista é censurada durante a Segunda Guerra Mundial, até 19[43] onde tem as suas actividades encerradas por sérias dificuldades financeiras. Embora, a literatura e cultura tivessem no centro da vida de Césaire não demorou para que ele se [despontasse] como uma figura importante, também, para cenário político.
Pressionado pelas elites do campo de esquerda; a esquerda comunista se candidatou e se tornou Presidente Camara Municipal de Fort-de-France, que é a Capital da Martinica em 19[45] com [32] anos de idade, no ano seguinte em 19[46] se tornou Deputado da Assembleia Nacional da Martinica. Césaire foi relator da lei, que alterou o status de Colónia da Martinica, de Guadalupe, Guamá francesa e da Reunião para o Departamento francês, uma revindicação da sociedade, que aparentemente proporcionaria uma maior autonomia e economia a Ilha.
A contradição era que essa estratégia de departamentalização, como reparação, ou seja, como uma tentativa de reparar os danos causados pela colonização, uma tentativa administrativa de inclusão desses povos numa espécie de “cidadania francesa” traria em si, a armadilha da alienação cultural, aos martinequenzes e isso preocupava Césaire profundamente.
Destarte, Aimé Césaire, passa a ter como prioridade; a preservação, valorizarão e o desenvolvimento da cultura do povo martinicano, partilhando sua vida entre a Martinica e París. Foi na capital da França , que Césaire fundou outra Revista chamada «Presença Africana» juntamente com um[1] senegalês e dois[2] guadalupenses, mas tarde essa Revista se transformou numa Editora, responsável por publicar trabalhos como de Cheik Anta Diop, destarte como romances e novelas, de Josefo Zhobo, Frantz Fannon, também publicou nessa Revista um artigo sobre questões relacionadas a cultura.
Mas, é nessa Revista, não como Editora, mas ainda como Revista «Presença Africana» em 19[50], que pela primeira vez, Aimé Césaire publicou um texto que teria alto impacto para as lutas anticoloniais: «O Discurso Sobre o Colonialismo», que é o que eu vou me ocupar aqui de forma introdutória.
Em 19[58] Césaire tece profundas críticas ao Partido Comunista Francês [PCF], especialmente por contradições entre o pensamento e a acção, decide então, fundar um Partido Progressista Martinequês, que tem a intensão de instaurar um Comunismo mais coerente. Césaire continuo na vida publica durante [56], e morreu aos [94] anos na Capital da Martinica em 20[08].
Essa rápida contextualização histórica da vida desse poeta, político e intelectual é fundamental para compreendermos melhor essas duas [2] partes do texto, que eu separei, parte um [1] e parte dois [2].
É importante compreender, que o empreendimento colonial, e eu me apoio em E.J. Hobsbawn no seu livro «A Era das Revoluções», pode ser visto como um complexo económico cujo o centro era a Europa. A partir do estabelecimento desse marco, central e ocidental uma nova racionalidade económica e política foi instaurada e reverberada para o mundo com status de universalidade como é o caso das Revoluções políticas e industrial.
No ano de 17[89] século [XVIII], o ano da Revolução francesa o proprietário privado, típico era dono duma propriedade enorme quase feudal, ou duma grande plantação sustentada pelo trabalho de povos escravizados. Nesse ano, a Europa já era considerado complexo económico cujo trabalho escravo estava presente em praticamente toda América Central, nas chamadas Ilhas do Caribe, no litoral Norte da América do Sul, no Brasil, no litoral Sul dos Estados Unidos para ficar apenas no Continente americano.
Destarte, seguíamos aqui produzindo para esse mercado central, para esse centro produtivo, administrativo, o açúcar, o café, o tabaco, tintas e a partir da Revolução industrial, também produzíamos algodão. Foi, também nesse ano de 17[89] que a burguesia francesa, então uma classe revolucionária com suas ideias liberais, arrebatou um povo profundamente empobrecido contra um Estado hierárquico, monárquico, clerical em profunda crise socio-económico.
Nesse momento revolucionário, estabeleceram suas exigências no que chamaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ali, foi possível responder ao [desespero] do povo francês, com outra perspectiva política, ou seja, «os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis. A propriedade privada é um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis, pessoalmente ou através de representantes. Liberdade, igualdade e fraternidade; o direito de todos os povos.»
Nasceu o humanismo, o facto é que os revolucionários franceses inspiraram todas as revoltas subsequentes, incluindo os povos que estavam submetidos ao seu poder económico. A França, juntamente com outros países europeus notarialmente; Inglaterra, Espanha e Portugal, criaram a [barbárie colonial], se serviram dela, mas contraditoriamente, também produziram uma perspectiva política e revolucionária, que correu o mundo todo.
Como menciona Aíme Césaire, nessa primeira parte do seu discurso, a Europa criou um problema para si mesmo, que incapaz de resolver. Reflete e/ou observa, que o empreendimento colonial é incompatível com os nobres princípios humanistas: igualdade, liberdade, fraternidade e que só…, uma civilização moribunda e decadente [trapaceia] seus princípios e precisa se revestir com o manto da hipocrisia para se justificar.
Aimé Césaire, afirma categoricamente: «não há defesa para Europa». E ele segue dizendo; que não só são somente os povos empobrecidos da Europa, que realizaram esse julgamento, mas todos aqueles, que estiveram e permanecem submetidos pela violência da escravidão. Isso, porque no momento histórico em que Aimé Césaire escreve, além de que todos os oprimidos no mundo, já sabiam que os europeus mentem.
No texto, Cesaire, revela a construção duma armadilha eurocêntrica, hipócrita, que cria um conceito de civilização e opõe esse conceito às Colonias, e nesse momento Césaire começa a descrever o processo de colonização, a partir do que ele não foi; a partir do que esse processo não foi; nem envangelização, nem empresa filantrópica, nem educação formal, nem extensão do direito ao povo, o que houve foi; pirataria, roubo, comércio, enfim…, o alargamento da exploração económica em larga escala.
Os europeus, aludi Césaire se vestiram com o manto da hipocrisia, forjaram uma equação desonesta vinculando: cristianismo e civilização, paganismo e selvajaria e em nome de Deus; mataram, saquearam e torturaram. As consequências dessa arquitectura política, económica e ideológica foi o racismo dos quais as vítimas foram os povos originários; os negros e os amarelos [asiáticos].
Embora, reconheça-se extremamente positivo, que os povos do mundo façam intercâmbio, e que a Europa em certa medida se tenha tornado uma encruzilhada, receptáculo de ideias filosóficas, e redistribuidora desta energia, questiona se a colonização foi instrumento ideal de contacto humano, de possibilidade de troca cultural com outros povos. Pensar um empreendimento colonialista por esta ótica de troca humanista, segundo Aimé Césaire é um equívoco, porque em todas as iniciativas expedicionárias, nos Estatutos coloniais, em Circulares ministeriais não havia um só valor humano.
Na segunda parte do «Discurso Sobre o Colonialismo», Aimé Césaire apresenta um [paradoxo] muito interessante. A colonização, desumanizou e descivilizou; embruteceu o colonizador e a Europa toda. Isso mesmo! Descivilizou a Europa, todos os artifícios espúrios, toda imoralidade, degradação passaram por requintes de refinamento durante todo o processo colonial e revelou ao mundo o que de pior os seres humanos foram capazes de fazer a outros seres humanos.
Césaire, apresenta uma descrição dessas [atrocidades] realizadas nas Colonias: a cobiça, o ódio racial, a degola, o estupro, o suplicio tudo isso, aceito pelos franceses. E destarte, Césaire afirma; «há um veneno instilado nas veias da Europa e o progresso lento, mas seguro do asselvajamento do continente». Nesse percurso reflexivo, Césaire nos lembra, que a própria Europa recebeu um duro golpe; um ricochete da colonização. A Gestapo, ou seja, as Polícias Secretas do Estado alemão, de repente a Europa recebe o Nazismo oficialmente em 19[43] com surpresa, nesse momento a selvajaria, a barbárie passa a ser algo inconcebível, inimaginável.
Mas…, porquê somente agora!? A questão é que antes da Europa ser vítima, os povos negros e povos não brancos, que tem no mundo, já estavam submetidas a isso, e os povos imperialistas do Ocidente fecharam os olhos; foram cúmplices, toleraram. Ou seja, absorveram esses crimes.
E aqui é importante realçar, e eu me apoio em Jerusa de Fátima, que as primeiras experiências de implantação de campos de concentração e extermínio foram em África, ou na região Sul da Africa, que hoje é Africa do Sul, em período de guerra entre impérios europeus chamada Guerra dos Bóeres no final do século [XIX] região, que colonizada pelos ingleses. O outro, o outro campo de concentração foi construído na região, que hoje é a Namíbia, colonizada pelos alemães. Nesse território, a Guerra Colonial entre 19[04] -19[07] resultou no que foi considerado o primeiro genocídio do século [XX] do grupo étnico Herero e Nama, reconhecido inclusive pelos historiadores alemães, que estão passando, ou, estão revisitando a história, e promovendo uma série de desvelamento daquilo, que ficou encoberto. Sobre isso, há um pequeno documentário [expedição Namíbia] o primeiro genocídio do século [XX]. Aqui eles apresentam Documentos, inclusive em que um General alemão autoriza mortandade inclusive de civis, mulheres e crianças.
Hora! Dito isso, cito um trecho do discurso de Aimé Césaire, que é muito ilustrativo desse facto histórico, que com o apoio da Professora Jerusa de Fátima acabei de apresentar. «Necessário seria, revelar ao burgues, muito distinto, muito humanista, muito cristão do século [XX], que trás em si um Hitler, que ignora que Hitler vive nele. O que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é humilhação do homem em si é, o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco, e o ter aplicado a Europa processos colonialistas, que até então só árabes da Argélia, os cólis da índia e os negros da Africa estavam subordinados».
Para ele, no final desse beco sem saída chamado Europa, dessa tentativa desesperada de sobrevivência do capitalismo ao final desse humanismo formal a Hitler. E segue questionando: o humanismo ocidental, a ética burguesa e o moralismo cristão, reforça como cientistas do Ocidente imperialista construíram um conceito de raça para hierarquizar e submeter os outros povos a dominação europeia. E afirma quando um europeu, na pessoa de cristão, de um político, de um cientista, julgava [lícito] aplicar aos povos não europeus todas as atrocidades possíveis em benefício das nações consideradas mais fortes, superiores, desenvolvidas e civilizadas, já era Hitler falando. segundo Aimé Césaire, «ninguém que coloniza permanece impune». Já é uma civilização doente, moralmente ferida. O processo de colonização, nega a civilização, desumaniza. A colonização, destrui outras civilizações, outros povos e suas organizações materiais de reprodução de vida, destruiu outros saberes, outras culturas, outras formas desse relacionar com o espiritual, com a natureza, enfim…, outras formas de ser e de estar no mundo em nome do quê!!!...
Essa denominada superioridade ocidental deixou o quê de positivo no Continente africano? na Ásia? e na Oceânia?... Deixou segurança? Deixou educação? Deixou cultura? Deixou direito? Nesse processo, não houve contacto humano verdadeiro, não houve troca, mas…sim…houve relação de submissão e dominação.
Sociedades inteiras foram esvaziadas de si, culturas inteiras foram espezinhadas, instituições minadas, terras confiscadas, religiões inteiras assassinadas, expressões artísticas magníficas simplesmente aniquiladas, extraordinárias possibilidades de serem e estarem no mundo [suprimidas] e algumas para sempre. Na verdade, o que se promoveu nesses territórios foi a insegurança, o medo, o complexo de inferioridade, o servilismo. A herança colonial e o imperialismo ocidental resultaram na proletarização e na mistificação do mundo.
O texto de Aimé Césaire, a meu juízo, mais actual e impossível nos provoca e nos convoca ao exercício de reflexão interessante. A destruição dos recursos naturais, as pragas, as pandemias, o desemprego, a fome, as violências e chacinas de inocentes, os crimes contra os seres humanos em nome da fé, o crime organizado presente em todas as instâncias da vida, o racismo inflamado, o femenicídio, a xenofobia enfim..., esta calamidade humana, tem uma matriz: o empreendimento colonial imperialista, que permanece em outras bases tecnológicas no sentido amplo.
Nesse sentido, como alterar o rumo das coisas !? O facto é que revisitarmos a história, questionarmos a história oficial, compreendermos seus processos políticos e económicos, investirmos em espaços de debates para construções colectivas de conhecimento; espaços estes que promovam projectos colectivos de conivência verdadeiramente alternativos, são tarefas urgentes[indispensáveis].
É preciso resignificar a política em nossas vidas. Política, enquanto acção colectiva de projecto de convivência, pois não há saídas individuais para o tamanho dos problemas que temos. Precisamos de um projecto colectivo de convivência, que efectivamente considere as [diferenças] como a maior riqueza da humanidade. É preciso estranhar as ausências produzidas, questionar e exigir a presença do diverso em nossos espaços, do contraditório e…, insistirmos no exercício da escuta atenta e afectuosa. Como nossos antepassados seguimos na luta pela vida sem ilusões, mas…, com muita esperança no amanhã.
Portanto, essas foram as reflexões sobre as duas [2] partes do texto de Aimé Césaire, bastante instigantes e…, fica aqui uma recomendação; é um excelente livro, este livro é uma declaração de guerra; guerra ao racismo, ao colonialismo e a ostentosa hipocrisia de intelectuais e políticos à serviço do capitalismo. «O Discurso Sobre o Colonialismo» é um monumento de elegância, ironia e fúria em forma de texto.
Dá para você encontrar em PDF.
n/b:
O campo dos Estudos de-coloniais ou de descolonização, a meu ver, é um assunto urgente, e é riquíssimo. Esse campo de Estudos, está principiando e alguns autores, já com discussões teóricas bastante aprofundadas, mas não é algo simples de ser efectivado, de ser colocado em prática. Então, muitos destes trabalhos fazem articulação entre a teoria que é necessária, mas com uma prática de-colonial, uma prática descolonizada que é fundamental.
À Academia moçambicana, para quando a introdução do campo dos Estudos de-coloniais?
Manuel Bernardo Gondola
Desde Maputo, aos [06] de Dezembro 20[20]