Jihadismo ou má governação? O que explica três anos de conflito e mais de meio milhão de deslocados em Cabo Delgado, Moçambique. A resposta é complexa: entre a pobreza e o "sonho" do desenvolvimento prometido pela exploração de gás natural, há expectativas defraudadas, um Estado distante e conflitos étnicos que o tempo não dirimiu. 2021 pode ser um ano decisivo para o conflito, mas isso não resolve o problema das pessoas — das que ficam e das que fogem.
A violência armada em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, começou há três anos e está a provocar uma crise humanitária, com mais de duas mil mortes e 560 mil deslocados. Sem habitação ou acesso a alimentos, o drama concentra-se sobretudo na capital provincial, Pemba.
O Governo português "tem acompanhado atentamente a situação" e a recomendação para quem viajar para esta zona de Moçambique é de que "limite as deslocações ao imprescindível", estando desaconselhada a "permanência nas áreas mais afetadas e as deslocações rodoviárias para norte de Pemba".
Multiplicam-se as notícias sobre ataques armados reivindicados pelo grupo "jihadista" do autoproclamado Estado Islâmico e suas consequências, mas será o bastante para justificar a instabilidade em Cabo Delgado?
Felipe Pathé Duarte, professor-investigador em questões geopolíticas e professor-investigador na Nova School of Law, que desde 2017 — "desde os primeiros ataques em Mocímboa da Praia" — acompanha a situação em Moçambique, considera que estamos perante uma “insurgência local”, “um problema interno” e “uma guerra interna”.
Em suma, Felipe Pathé Duarte aponta para um problema que vai muito para além do jihadismo, que só apareceu numa segunda fase, num movimento de aproveitamento. O problema de fundo, que o antecede, prende-se com o contexto socioeconómico, étnico e geográfico.
"Não é um problema de jihadismo, acho que é essencialmente um problema interno, social e político, de descontentamento populacional relativamente ao governo central de Moçambique, em Maputo”.
Este descontentamento gravita — “como é uma espécie de gramática comum do jihadismo” — para um aproveitamento por parte do movimento extremista, que “explora esse mesmo descontentamento e esse mesmo ressentimento, dando-lhes uma identidade islâmica/jihadista”.
Assim, “mais do que um problema de jihadismo, é um problema com o poder central”, reiterou Pathé Duarte.
"Cabo Delgado é uma zona altamente rural e é a província mais pobre de Moçambique”, tendo também um "índice de desemprego jovem brutal". No entanto, “em contraposição a tudo isto, de repente, há a possibilidade de Cabo Delgado ser o Catar de África", começa por explicar Felipe Pathé Duarte, referindo-se aos investimentos em exploração de gás natural a acontecer, de momento, na região.
Portanto, haverá aqui um paradoxo, na medida em que a "zona mais pobre está cheia de expectativas”, mas estas expectativas de crescimento económico da região e dos seus moradores “acabaram por nunca acontecer" — num choque tremendo entre sonhos e realidade.
Depois, “a maior parte dos insurgentes, que pertence a este grupo chamado Al-Shabaab, são muanis", que “é uma minoria étnica daquela região de Cabo Delgado e da Tanzânia”. São muçulmanos e “têm um histórico de conflito contra os macondes”, que “sempre foram a etnia dominante na região”. De acordo com Felipe Pathé Duarte há um histórico de contestação por parte dos muani relativamente ao poder dos maconde, o que também justifica a tensão atual.
Por fim, a dimensão geográfica: a província de Cabo Delgado, estando situada no norte de Moçambique, é um "ponto central de rotas” comerciais, de contrabando de materiais preciosos (“zona de rubi”) e de fluxos migratórios rumo à África do Sul.
Para além deste problema de convergência de rotas muitas vezes ilegais, há que também ter em consideração que a distância entre Maputo, capital de Moçambique, e Pemba, capital da província de Cabo Delgado é de, por estrada, 2442 km – um percurso que, segundo o Google Maps, demorará cerca de 31 horas a ser realizado de carro. Em termos de comparação, é mais ou menos a mesma distância entre Lisboa e Frankfurt, na Alemanha. A diferença é que este percurso desde a capital portuguesa até à cidade alemã, que se encontram separadas no percurso mais rápido por 2318 km, poderia ser feito em apenas 22 horas e 41 minutos.
As estradas que existem são más, o que possibilita, aponta Felipe Pathé Duarte, a possibilidade de perda de controlo por parte das autoridades locais em prol de insurgentes na região.
A qualidade da estrada, para além de fator que contribui para a perda de controlo estatal, pode também representar a relação entre a capital e a província. "A própria ingerência do governo, da política e de Maputo naquela região é nula e, portanto, não cumpre as expectativas a esta juventude”, que, em consequência, acaba por se revoltar.
É este o contexto que permite um aproveitamento por parte do Estado Islâmico, que propõe um modelo de identidade islamista numa região cheia de questões existenciais e de “difícil controlo por parte do Estado”.
O objetivo do Estado Islâmico é, segundo o professor-investigador, o de “dar uma ideia de ação global”, apesar da temática ser muito anterior à sua ingerência na questão.
A par, os vídeos de terror na região publicados visam colocar dentro das pessoas uma “sensação de vulnerabilidade” e de, por vezes, demonstrar uma capacidade bélica maior do que aquela que, efetivamente, existirá – é a “questão da imagem”.
Assim, apesar de haver “uma ligação direta entre gente que esta lá [em Cabo Delgado] e o comando central do Daesh, (...) não foi o Daesh que começou esta sublevação”, conclui.
Mais de 500 mil refugiados
O resultado mais imediato desta instabilidade é o problema humanitário. As indicações apontam para um quadro de meio milhão de refugiados e “a ONU, naturalmente, está a chamar a atenção para isso”.
“Este número de deslocados é um número que vai causar disrupção social, quer em Pemba quer noutras cidades próximas", alerta o investigador da Nova School of Law.
Myrta Kaulard, coordenadora residente das Nações Unidas em Moçambique, descreveu à agência Lusa, em dezembro, a situação humanitária em Cabo Delgado como “extremamente crítica”, apontando o abrigo e alimentação como as principais necessidades das populações deslocadas devido à violência armada.
“Estamos muito preocupados, há várias crianças com clara evidência de subnutrição, há falta de abrigo e água tratada”, disse Myrta Kaulard.
Para fazer face às necessidades das populações afetadas, a ONU lançou, em dezembro, 208 milhões de euros, um montante que visa responder às necessidade de 1,1 milhões de pessoas durante o próximo ano, incluindo as pessoas que se refugiaram nas províncias de Niassa e Nampula, vizinhas de Cabo Delgado.
“As necessidades estão a aumentar, começámos o ano de 2020 com 90 mil deslocados e agora temos mais de meio milhão”, lamentou Myrta Kaulard.
Em junho, a ONU lançou um apelo e conseguiu mobilizar 35 milhões de euros. “A comunidade internacional respondeu muito bem ao nosso apelo de junho e conseguimos assistir perto de 400 mil pessoas. Mas agora a situação está pior e mesmo neste momento que estamos a falar temos pessoas que estão a fugir das zonas onde vivem, das suas aldeias”, observou Myrta Kaulard, acrescentando que a pressão é maior agora porque, devido à crise provocada pela Covid-19, a comunidade internacional tem poucos recursos.
“Estamos muito preocupados porque esta situação pode provocar mais pressão e tensões entre as comunidades acolhedoras e as deslocadas. A situação é mais complicada particularmente para os jovens, que podem ficar mais vulneráveis a discursos e a manipulações dos próprios terroristas”, disse a coordenadora.
Há uns anos, numa TedTalk sobre “Terrorismo e Confiança”, Felipe Pathé Duarte alertou para a necessidade de não se deixar cumprir o fado de tal verso de Alexandre O’Neill - "O medo vai ter tudo".
Questionado sobre o que nos espera o futuro deste conflito e se acha que o medo poderá triunfar, o investigador não crê que esta “insurgência represente uma ameaça existencial ao Estado de Moçambique”.
Para Felipe Pathé Duarte o governo de Maputo não vai deixar cair a província de Cabo Delgado, pelo que o que se pode esperar, na sua previsão, será uma “espécie de guerra de baixa intensidade naquela região”, que “progressivamente vá desgastando um conjunto de recursos de Moçambique”.
Assim sendo, uma outra consequência deste embate será o facto de "atrasar significativamente e comprometer significativamente as expectativas de Moçambique de recuperar em termos económicos/enérgicos”.
Para o professor-investigador de questões geopolíticas esta questão pode ser comparada com a do Delta do Níger, uma região de exploração de petróleo na Nigéria, que, desde os anos 90, está envolvida num conflito armado entre forças estatais, corporativas privadas e milícias armadas - o que constantemente põe em causa a segurança do local. No entanto, de notar que a exploração a ocorrer em Moçambique não é de petróleo, mas sim de gás natural.
A "maldição dos recursos naturais"
A petrolífera francesa Total disse à Lusa, já em janeiro, que começou a reduzir o número de funcionários que trabalham nos megaprojetos de gás natural em Afungi (distrito de Palma, a norte de Pemba, capital da província de Cabo Delgado), face à evolução dos ataques próximos aos empreendimentos.
"O processo de desmobilização está em curso de forma organizada e em conformidade com os protocolos estabelecidos", referiu uma nota da empresa.
A decisão da Total surge após grupos rebeldes que têm protagonizado ataques armados em Cabo Delgado efetuarem, pelo menos, dois ataques próximos dos megaprojetos liderados pela francesa em Afungi no último mês.
O projeto liderado pela francesa Total é o maior investimento privado em África, estando na ordem dos 20 mil milhões de euros.
Cláudia Almeida, investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, questionada pelo SAPO24 sobre o impacto que a exploração de gás natural poderá ter no conflito, refere esta ideia de “maldição dos recursos naturais”.
Mas o cerne "não é a presença dos recursos naturais. É a gestão dos recursos naturais", ressalva, realçando que, nestes casos, urge entender se a lógica por trás da exploração “assenta nos interesses das populações, na integração das populações ou se, pelo contrário, assenta no estabelecimento de interesses capitalistas”.
Nesta matéria, é imperativo que se entenda se a proteção conferida pelo governo às empresas exploradoras tem como objetivo a proteção dos trabalhadores das mesmas ou a proteção das populações na zona, refere.
"A questão das terras é fundamental para perceber o que se está a passar em Cabo Delgado”, diz Cláudia Almeida, acrescentando que é necessário que se olhe para a legislação e se analise o que seria suposto acontecer entre as empresas que exploram o gás natural, o governo e as populações locais.
A investigadora recorda também que não podemos considerar apenas a relação que a população tem com a terra em termos de sustentabilidade, mas devemos também ter em conta a relação espiritual com a mesma.
No entanto, a investigadora — que tem mantido contacto com académicos e jornalistas em Moçambique que têm investigado a origem dos insurgentes em Cabo Delgado — concorda com Felipe Pathé Duarte e com a ideia de que este não é um conflito de explicação única, desde a “sua génese, à sua manutenção e evolução”.
“Existe um consenso entre académicos e jornalistas moçambicanos que esta guerra não tem uma explicação simples. Ou seja, é uma conjugação de vários fatores. Fatores esses que muitas vezes são resultado de uma trajetória política, de identidades. No caso de Cabo Delgado é uma província marcada por uma trajetória larga de violência, de várias guerras".
Cláudia Almeida, tal como Felipe Pathé Duarte, aponta, então, para uma necessidade de uma visão supra jihadista da questão. Afinal, em primeira instância, estaremos perante um corpo de pessoas que se sentem como “marginalizados” pela sociedade moçambicana – e é necessário entender o porquê deste sentimento.
A "província de Cabo Delgado é uma província marcada pelo desemprego, pela pobreza", o que levará a “toda uma camada juvenil de jovens também marginalizados" pelo facto de não conseguirem progredir na vida ativa.
Para Cláudia Almeida, sobre o processo de criação de identidades marginalizadas” é necessário entender “se estamos perante a marginalização de uns em favor do benefício de poucos".
Quando questionamos a investigadora sobre como é que o governo de Moçambique olha para este problema, refere que "a retórica é que a causa da guerra é externa".
Em comparação, a investigadora diz que se pode olhar para a guerra civil que ocorreu no país a partir de 1977. Na altura, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) opôs-se ao partido no poder desde a independência do país, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Há mais de 40 anos atrás, aponta Cláudia Almeida, o discurso era o mesmo, “a retórica era que a guerra era uma agressão externa, eram bandidos armados apoiados pelas forças racistas sul-africanas”. Deste modo, o que será interessante de explorar será o facto deste tipo de discurso acabar por conseguir “angariar apoios externos na luta”.
"Temos de compreender que, de facto, há um elemento externo [o autoproclamado Estado Islâmico], que temos de enquadrar numa dinâmica que vai além de Moçambique, mas também temos de perceber as próprias dinâmicas locais, que estão, obviamente, inscritas num processo histórico, de construção do Estado, de relação do Estado com as populações”.
Depois é preciso perceber que “esta guerra em Cabo Delgado ainda tem bastantes segredos”, acrescentou Cláudia Almeida, citando um outro investigador da matéria, o professor Rafael da Conceição.
O facto é que o acesso jornalístico à região não é fácil. “Estamos a falar de uma zona de guerra”, lembra Felipe Pathé Duarte.
Para além disto, o acesso à informação também poderá ser dificultado pelo governo moçambicano, alegadamente interessado em que a informação que passa para fora não seja assim tão clara. “Maputo não tem capacidade para resolver a situação e tem alguma dificuldade em assumi-lo. Portanto, naturalmente, quanto menos informação jornalística houver sobre isso, melhor as coisas funcionam na perspetiva de Maputo", diz Felipe Pathé Duarte.
Por outro lado, Cláudia Almeida salienta que esta dificuldade de acesso a factos e dados concretos pode ainda levar a uma “chamada propaganda militar” de ambos os lados.
Que papel pode ter Portugal
Questionado sobre o que poderia fazer Portugal para ajudar a resolver esta questão bélica, Felipe Pathé Duarte não teve dúvidas. "Portugal não pode fazer muito”. No entanto, como membro da União Europeia, Portugal pode “alertar para a situação e criar condições para uma ajuda de âmbito humanitário àquela região”.
Acrescentou também que “uma intervenção que não seja humanitária no quadro da União Europeia e no quadro das Nações Unidas é muito difícil, a não ser que haja um pedido expresso direto de Maputo” – o que não está convencido que possa ocorrer.
Olhando para a história entre Portugal e Moçambique, Felipe Pathé Duarte vê como uma utopia a presença de tropas portuguesas no terreno. “É impensável no imaginário coletivo moçambicano”, afirmou.
Desta forma, na prática, o que poderá acontecer para ajudar a dirimir o conflito na zona será uma “cooperação internacional, mas de âmbito regional” – o que, refere o professor-investigador, “progressivamente já esta a acontecer”.
Segundo Felipe Pathé Duarte, “as nações africanas da África austral possivelmente hão de organizar-se cooperativamente e intervir naquela região", na medida em que "são as nações que, para já, têm mais interesse numa estabilidade daquela região".
Ainda do ponto de vista regional, o investigador português Fernando Jorge Cardoso, citado pela Lusa, defende que a guerra na província moçambicana de Cabo Delgado só terá um fim quando for assinado um acordo com a Tanzânia (país que faz fronteira com o norte de Moçambique) que contemple a cedência de parte das receitas do gás natural em Moçambique.
Para o professor e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, com experiência na análise de assuntos africanos, parte dos confrontos em Cabo Delgado estarão contidos no primeiro trimestre do próximo ano de 2022, mas a solução final passa por um acordo com a Tanzânia, país de onde vêm, ou por onde passam e se refugiam, muitos dos combatentes jihadistas que hoje operam naquela região de Moçambique.
Após as derrotas militares, "muitos dos insurgentes vão fugir para o sul da Tanzânia, mas sempre a pensar voltar. Então a solução para a guerra passa por negociações com aquele país", frisou. Por outro lado, "o governo tanzaniano nunca esteve satisfeito com a forma como foram desenvolvidas as decisões por parte dos consórcios internacionais de gás", localizando as suas fábricas e outros empreendimentos tudo do lado moçambicano e nada no sul do seu país, destacou.
O que significa que é preciso haver "uma melhoria das relações" entre os dois países, considerou Fernando Jorge Cardoso. No seu entender "só é possível se o governo tanzaniano entrar na partilha de alguns dos benefícios do gás".
Augusto Santos Silva, o enviado europeu
O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, foi entretanto nomeado pelo chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, para se deslocar a Moçambique como seu enviado, de maneira a abordar com as autoridades locais a situação em Cabo Delgado.
"A urgência pede celeridade e a missão realizar-se-á no prazo de algumas semanas", disse Augusto Santos Silva à agência Lusa, em dezembro.
O chefe da diplomacia portuguesa adiantou que, no momento, estão a ser finalizados os termos de referência da missão, para que depois possa ser marcada, com as autoridades moçambicanas, a agenda dos contactos.
O ministro dos Negócios Estrangeiros mostrou-se "honrado" com a nomeação para liderar a missão em representação de Josep Borrell, considerando que irá contribuir "para que a resposta da União Europeia de apoio a Moçambique seja o mais rápida e eficaz possível".
Na declaração à agência Lusa, o chefe da diplomacia portuguesa rejeitou as críticas de demora da resposta europeia à situação de violência e crise humanitária em Cabo Delgado.
"Moçambique é um estado soberano e decidiu pedir apoio à UE no passado mês de setembro. A UE estava em condições de preparar e organizar esse apoio a partir do momento em que Moçambique, estado soberano, o solicitou", disse. "A resposta positiva para ser eficaz, tem de ser preparada", acrescentou.