Com ataques cada vez mais perto das instalações de gás natural, Maputo já não procura minimizar crise em Cabo Delgado. Presidente nomeou novo chefe dos militares e novo embaixador na vizinha Tanzânia
JOSÉ PEDRO TAVARES
Apesar de a insurgência armada na província de Cabo Delgado já durar há mais de três anos, as campainhas devem ter soado insistentemente em Maputo nas últimas semanas, depois de militantes do Daesh terem realizado uma série de ataques muito perto das instalações da multinacional Total, que tem concessão para a exploração de gás natural na península de Afungi, perto de Palma. Entre o Natal e o Ano Novo houve incursões nas aldeias de Mute, Mondlane, Olumbie Quitunda, num raio de 20 quilómetros dos locais da petrolífera.
Embora todos os ataques tenham sido repelidos pelas forças de segurança, a Total decidiu no início do ano parar as obras e evacuar por via aérea a maior parte dos 3000 trabalhadores no local. Poucos dias depois, o diretor-geral da multinacional francesa, Patrick Pouyanné, voou para Maputo, onde se encontrou com o Presidente Filipe Nyusi e outros dirigentes moçambicanos, para discutir o reforço da segurança em redor do empreendimento.
Nyusi, que começou por negar o conflito e passou por largos períodos de hesitação, ambiguidade e passividade, parece agora decidido a resolver a questão. Nas últimas semanas nomeou dois confidentes e amigos para posições-chave: Eugénio Mussa é o novo chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e comandante das operações no Norte; Ricardo Mtumbuida, até agora chefe de contrainformação nos serviços de informações, passa a embaixador na Tanzânia.
NYUSI DESCONFIA DA RENAMO
A nomeação de Mussa assume especial importância, pois sugere uma alteração de forças no regime. Até agora as operações em Cabo Delgado — de facto, todas as principais tarefas de segurança do Estado — tinham estado sob coordenação da Polícia da República de Moçambique (PRM), em parte porque o regime desconfiava da presença de membros da Renamo (partido da oposição) nas forças armadas, uma das consequências do acordo de paz que pôs fim à guerra civil em 1992.
Esta nomeação também “indica que Nyusi quer tomar maior controlo das decisões estratégicas sobre Cabo Delgado”, sugere o site do Projeto Conflitos Armados —Localização, Dados e Incidentes (ACLED). Há quem aplauda. “Poderá indicar o começo de uma gestão mais eficaz da guerra”, defende, em declarações ao Expresso, Adriano Nuvunga, professor de ciência política na Universidade Eduardo Mondlane,em Maputo.
Mussa acompanhou Nyusi durante a sua importante visita à Tanzânia, no passado dia 11. O país vizinho, que faz fronteira com Cabo Delgado, é fulcral para resolver o problema. Muitos dos terroristas são tanzanianos e o país vizinho serve de passagem ou refúgio para as suas operações. As relações entre a Tanzânia e Moçambique têm sido marcadas por tensão, já que Dar-es-Salaam reclama a cedência de parte das receitas do gás natural, uma vez que as jazidas ao largo da costa norte de Moçambique se estendem às águas tanzanianas. Daí que Nyusi tenha nomeado um homem da sua confiança máxima para negociar com o recém-eleito Presidente tanzaniano, John Magufuli.
O projeto da Total no extremo norte de Moçambique, uma das áreas mais pobres do país, é o maior investimento privado em África (€15 mil milhões). A multinacional francesa adquiriu uma área da península de Afungi, onde está a realizar o projeto de engenharia. A construção da zona industrial para liquefação de gás (LNG), que chegará a terra através de gasoduto, deveria começar este ano, com o início da exploração prevista para 2024. A Total estima poder produzir até 13 milhões de toneladas de LNG/ano, durante 25 anos.
TERRORISTAS ENFRAQUECIDOS?
Paradoxalmente, estas mudanças ocorrem num período em que analistas de defesa sugerem que os rebeldes dão sinal de fragilidade, mesmo que as forças moçambicanas não tenham conseguido recapturar a estratégica vila portuária de Mocímboa da Praia, outrora centro logístico do norte, a 80 quilómetros de Palma, nas mãos dos extremistas desde agosto de 2020. O número de ataques e a sua intensidade parecem ter diminuído nas últimas semanas. As incursões na zona de Palma sugerem mais busca de alimentos do que ataque à petrolífera francesa. “Um ataque direto em Afungi seria um contrassenso”, sugere ao Expresso Alexandre Raymakers, da empresa sul-africana de análise de riscos Verisk Maplecroft. “A estratégia passa mais por atacar povoações, enquanto acantonam as tropas governamentais em volta dos projetos de gás bem defendidos, o que também ajuda a criar uma narrativa favorável de que o Governo protege mais os recursos do que as pessoas.”
O conflito em Cabo Delgado, que começou por ser um movimento de pequenos grupos de moçambicanos recém-regressados de escolas islâmicas no estrangeiro —tentaram impor uma versão radical do islão, tendo sido prontamente expulsos para o mato pelas forças da ordem e pelo Conselho Islâmico de Moçambique —, tornou-se em 2019 uma ameaça terrorista de dimensões internacionais, com a chegada de armas e militantes estrangeiros, a afiliação ao Estado Islâmico da Província da África Central (EIPAC), e ataques cada vez mais coordenados e devastadores.
AJUDA SIM, TROPAS NÃO
O conflito tem ainda uma complexa nuance étnica. Segundo o ACLED, já provocou mais de 2000 mortos e 560 mil refugiados internos. Devido à situação de segurança, as agências das Nações Unidas e outras organizações humanitárias não têm acesso a zonas da província e a situação humanitária é grave e complexa, mormente porque associada a um surto de cólera e à pandemia.
Há receio de que o conflito possa estender-se às províncias de Nampula e Niassa, que são muito pobres, como Cabo Delgado, e onde o desemprego e a falta de investimento público favorecem o crescimento da revolta armada.
O ministro dos Negócios Estrangeiros português esteve em Maputo entre 19 e 21deste mês, em representação do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, para discutir o apoio da UE, na sequência do pedido de Maputo em setembro de 2020.Nyusi tem rejeitado todas as ofertas de tropas estrangeiras, apesar de ter contratado empresas de mercenários — primeiro os russos da Wagner, nos últimos anos a empresa sul-africana Dyck Advisory Group — para ajudar no combate ao EIPAC.
No fim da visita Augusto Santos Silva clarificou que Nyusi identificou três áreas para o apoio da UE: “Formação militar, apoio à ação humanitária para a população de Cabo Delgado e apoio à Agência para o Desenvolvimento do Norte de Moçambique”, órgão criado pelo Governo de Moçambique em 2019 para responder às críticas deque o Estado estava a ignorar as necessidades das populações locais, apesar dos rendimentos obtidos com as concessões de exploração de recursos naturais.
EXPRESSO(Lisboa) – 29.01.2021