Violência e ataques em Cabo Delgado, pandemia de covid-19, desastres naturais e outros problemas sanitários como malária e diarreia ou a interrupção de tratamentos para a tuberculose e o VIH assolam o dia a dia moçambicano. Entrevista com o chefe de missão da Médicos Sem Fronteiras em Moçambique, que fala em “situações humanitárias esquecidas”
Moçambique vive entre crises, por exemplo: a pandemia de covid-19 e o terrorismo vigente na província de Cabo Delgado, no Norte, onde se está desenrolar o maior investimento multinacional privado de África - neste caso para exploração de gás natural. Mas os desafios daquele país africano estão longe de se ficarem por aí: há outras doenças que ocupam os pensamentos das autoridades de saúde e das missões humanitárias e há o drama dos deslocados, cujo aumento é alarmante graças à instabilidade no Norte e também aos desastres naturais.
O mês de janeiro foi dramático para Moçambique, que somou mais casos e mortes por covid-19 naqueles 30 dias do que nos 365 de 2020. “Foi uma situação complicada, havia muitos casos complicados, em particular na cidade de Maputo”, diz ao Expresso Alain Kassa, chefe de missão da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no território. “Mas esse pico já passou, agora estamos numa situação um pouco mais estável. Também a província de Sofala sofreu da mesma forma, o espaço para tratar pessoas em situação grave era limitado em relação às necessidades.” Atualmente, o país indica que tem 164 doentes internados com o coronavírus (67% em Maputo).
O país já registou pelo menos 707 óbitos por covid-19 num universo de mais de 63 mil casos de infeção confirmados (76% estão recuperados). Há nesta altura 14 mil casos ativos. Esta semana começou a vacinação, que se foca nos grupos prioritários, nomeadamente nos 60 mil profissionais de saúde - quase 16 mil já foram vacinados, segundo o ministro da Saúde moçambicano, Armindo Tiago, o primeiro dos primeiros a ser vacinado. De acordo com a agência Lusa, o país já recebeu quase 650 mil doses de vacinas, uma parte importante proveniente da plataforma Covax e outra doada pelo Governo da Índia. As autoridades de saúde moçambicanas têm nesta altura à sua disposição as vacinas da AstraZeneca, desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford; a Covidshield, fabricada pela farmacêutica Serum Institute of India; e ainda Verocell, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinopharm.
O ministro Armindo Tiago prevê que toda a população moçambicana esteja vacinada até ao final do primeiro trimestre de 2022 ou, no pior cenário, no final do próximo ano.
Até lá, mantém-se o desafio diário de sensibilizar a população, embora a realidade funcione como uma bota a pressionar o pescoço: “Os transportes estão sempre superlotados, as pessoas têm de ir trabalhar de manhã e depois voltar para casa. Os meios de transporte são limitados. Há dificuldade em manter distanciamento social”, diz Kassa. Moçambique abriu recentemente as escolas e suavizou as medidas restritivas.
Mas nem só os desafios da covid-19 entopem os pensamentos de Alain Kassa, um franco-argelino de 60 anos que se expressa em Português. “Com a situação no Norte do país, temos dificuldades com a malária porque é doença do período chuvoso. Há muitos casos de malária, principalmente entre crianças”, esclarece. E continua: “Há também as doenças respiratórias por causa da gripe, não necessariamente covid mas da gripe normal. E a diarreia, devido à dificuldade de as pessoas terem acesso a água potável, que acontece por causa das cheias também. Há ainda outro assunto, relacionado com os deslocados de guerra, que são os tratamentos de tuberculose e VIH. As pessoas interrompem o tratamento por causa da deslocação, há pessoas que não conseguem continuar o tratamento”, conta, informando que o Ministério da Saúde tem promovido a intervenção de brigadas móveis para evitar que se interrompam tratamentos.
"A CRISE MAIS PREOCUPANTE É A DA PROVÍNCIA DE CABO DELGADO"
Alain Kassa está no país há 16 e nesta altura o que mais o preocupa é o que está a acontecer no Norte. “A crise mais preocupante é a da província de Cabo Delgado, no Norte, com esta situação de instabilidade. Além disso entrámos no período do tempo chuvoso, temos as ameaças de ciclone, principalmente na parte central do país. Estou a falar de uma situação que precisa de resposta humanitária.”
A violência armada em Cabo Delgado, onde se desenvolve o maior investimento multinacional privado de África, está a provocar uma crise humanitária com mais de 2000 mortes e 670 mil pessoas deslocadas - sem habitação, nem alimentos.
O primeiro-ministro de Moçambique, Carlos Agostinho do Rosário, disse esta quarta-feira que a estabilidade está "gradualmente" a voltar à província de Cabo Delgado mas admitiu que o impacto do terrorismo persiste na região. “Em relação ao combate ao terrorismo regista-se uma tendência de retorno gradual da estabilidade e segurança pública na província de Cabo Delgado, mercê da bravura das Forças de Defesa e Segurança.” Apesar de apontar progressos, o primeiro-ministro moçambicano reconhece que Cabo Delgado continua a ser assolado pela ação de grupos armados. “Continuamos a enfrentar o terrorismo em Cabo Delgado.” Carlos Agostinho do Rosário avançou ainda que o Governo vai continuar a fortalecer a capacidade operativa das Forças de Defesa e Segurança.
Sobre Cabo Delgado, onde “há poucos atores humanitários”, Kassa prossegue: “No ano passado, no início do ano, tínhamos 100 mil pessoas deslocadas, não totalmente relacionadas com a situação de instabilidade [na região], mas era relacionado também com o ciclone Kenneth, que aconteceu em 2019, então houve pessoas que perderam as casas. Depois, no mês de abril do ano passado, começou a instabilidade e a cada mês consideramos que houve mais ou menos um aumento de 50 mil novos deslocados. Significa que passámos de 100 mil em janeiro de 2020 para mais de 600 mil no final do ano”. A ONU indicou no início de março que essa cifra já supera os 760 mil deslocados. “Os campos para deslocados são limitados, alguns são dentro de escolas, há muitos riscos em termos de covid-19. A grande parte das pessoas deslocadas foi acolhida por familiares. Em vários distritos, receber tanta gente é um grande desafio em termos sanitários, especialmente no período da chuva”, diz o franco-argelino.
A Antena 1 visitou um desses campos de deslocados, em Cabo Delgado, no primeiro dia de março, onde estavam mais de 7000 pessoas sem água canalizada, luz e casas de banho. Alguns chegaram ali, a Pemba, depois de caminharem 150 quilómetros pelo mato. Há medo e falta pão. Falam em decapitações e em cenários de enorme violência.
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Já no centro do país está a autoproclamada Junta Militar, acusada de protagonizar ataques armados contra civis e forças governamentais em estradas e povoações das províncias de Sofala e Manica, centro de Moçambique, incursões que já provocaram a morte de pelo menos 30 pessoas. O grupo rejeita o acordo de paz assinado em agosto de 2019 pelo chefe do Estado moçambicano, Filipe Nyusi, e pelo líder da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), Ossufo Momade.
A todo este preocupante cenário bélico e violento junta-se a fúria da natureza, que já matou naquele país 96 pessoas desde outubro. Moçambique foi assolado desde outubro por eventos climáticos extremos com destaque para a tempestade Chalane e os ciclones Eloise e Guambe, além de outras semanas de chuva intensa e inundações.
O primeiro-ministro admitiu esta quarta-feira que a insegurança, a pandemia de covid-19 e os desastres naturais agravaram a situação do país, levando a uma contração da economia. “A combinação destas adversidades, sobretudo os impactos da covid-19, fizeram com que pela primeira vez nos últimos anos a nossa economia tivesse um crescimento económico que se situou em menos 1,3%, contra um crescimento de 2,2% registado em 2019”, especificou Carlos Agostinho do Rosário.
Alain Kassa vive em Maputo e admite que viu um país a transformar-se nos últimos 16 anos. Surgiram mais empresas, bancos e o ativismo está mais bem organizado. O que mais lhe tira o sono são “as situações humanitárias esquecidas”. Segundo o franco-argelino, “a resposta é muito limitada, as pessoas continuam a viver assim meses e meses, sem o apoio necessário”.
LUSA – 11.03.2021