S.M. 1) Prezado Delmar Maia Gonçalves, explique-nos que verdadeiramente mais o motiva e atrai na sua produção literária?
DMG : Na verdade, o que mais me motiva é o poder da palavra escrita além de dita.Óbvio que entendo a literatura como instrumento da verdade e não da mentira , do fingimento ou da subtração da verdade. É na palavra que me reconheço. É aí que digo "Esse sou eu! "Todos os grandes mestres clássicos da pintura e da escrita usaram o seu ofício da forma mais súbtil apenas para revelar a verdade. Usaram da subtileza para a esconderem, mas também para a revelarem. E passaram a mensagem que sobrevive ainda hoje contra todas as censuras da sua época. Hoje os valores inverteram-se. Há muitos pulhetas autênticos psicopatas ou sociopatas que até ganham alguma notoriedade através de lobbies instalados em sociedades culturais medíocres e alapando-se em instituições oficiais multinacionais baseando-se apenas na mentira. Estarei sempre motivado a denunciar, desfazer e desconstruir a pulhice reinante. Acredito ainda hoje que os escritores vivem policiados porque em muitos aspectos estão condicionados. E muitas vezes dentro das próprias organizações de escritores há medo, há receio, há desconfiança. E criar condicionado é bastante limitador das nossas capacidades, porque muitas vezes não nos exprimimos totalmente, ficamos com um nó na garganta. Embora se possam utilizar subtilezas de linguagem, mas sempre arriscadas.
S.M. 2.1) Como e quando surgiu a ideia de publicar o primeiro livro individual "Moçambique Novo, o Enigma"?
DMG : A ideia de publicar esse livro surgiu quando venci o 1º Prémio de Jogos Florais da Escola Secundária da Parede(1986) e o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro de Poesia(1987). Depois, houve os incentivos determinantes das escritoras Matilde Rosa Araújo(portuguesa) e Noémia de Sousa(moçambicana) para que eu avançasse para a edição do mesmo e continuasse a escrever. Ficar-lhes-ei eternamente grato.
Não posso deixar também de mencionar uma professora de Português,Latim e Francês do ensino secundário de nome Gabriela Moreira que muito me incentivou e encorajou.
S.M. 2.2)Nos círculos literários e culturais conheceu numerosos escritores, poetas e artistas plásticos moçambicanos e de outras nacionalidades. Quais destacaria?
DMG: Conforme disse anteriormente, nunca me esquecerei da Noémia de Sousa (moçambicana) pela sua enorme humildade, apesar da sua valia e pelos seus incentivos à minha pessoa como poeta ; Ascêncio de Freitas(um excelente escritor ignorado injustamente) que foi meu grande amigo e me deixou bons conselhos e alertas; o José Pádua(moçambicano , artista plástico e repentista) de uma humildade e simpatia escandalosas que me ilustrou livros; da Matilde Rosa Araújo(portuguesa), muito humilde, aberta ao mundo e atenta aos jovens e que também me motivou muito e me aconselhou; David Levy Lima (caboverdeano) artista plástico e dos melhores amigos que encontrei em Lisboa e que me ilustrou livros; Lívio de Morais(moçambicano)um excelente artista plástico, amigo e meu padrinho e da minha filha; Joaquim Canotilho(moçambicano) outro grande artista plástico e amigo que conheci em Lisboa; a minha amizade , colaboração e cumplicidade com a artista plástica Lara Guerra (moçambicana ) ; com o Mestre Eurico Gonçalves (português) pelas inesquecíveis lições sobre pintura e poesia zen; a minha colaboração e amizade com o poeta e artista plástico surrealista Fernando Grade(português) que me convidou para os Cadernos Viola Delta; a minha já longa amizade e colaboração com o poeta Jorge Viegas(moçambicano); o enorme prazer que tive em conhecer e colaborar com o artista plástico Roberto Chichorro (moçambicano); a minha amizade genuína com o escritor e jornalista Guilherme de Melo (moçambicano) que me alertou para a matilha de canalhas que pululam por Lisboa e finalmente o encontro com o Ntaluma(um amigo e grande escultor maconde).
S.M.3) Moçambique novo continua a ser um enigma?
DMG: Mas duvida disso? Olhe para o cenário actual do país! Veja o que se passa em Cabo Delgado, veja a divisão da Renamo(maior partido da oposição), veja as descobertas de novos recursos e as respetivas consequências(as boas e as más), veja a prática de raptos instalada nalgumas cidades, veja o assassinato de vozes críticas e a quase ausência de eco no exterior, porque no exterior instalou-se a bem paga desinformação de xiconhocas que para encherem os bolsos pouco se importam com a vida da maioria dos cidadãos. Esses indivíduos não querem saber das dificuldades da vida alheia. Portanto sim, ainda é um enigma! Não se sabe o que o futuro reserva para Moçambique. É um enigma e uma incógnita.
S.M.4)Fale-nos de "Fuzilaram a Utopia". Porquê este título? Fuzilaram mesmo a Utopia?
DMG: "Fuzilaram a Utopia" porque ainda não apostaram verdadeiramente na maior riqueza do país: o Povo moçambicano! Quantos anos passaram desde a proclamação da independência? Qual era o sonho dos moçambicanos após a independência? Quantos moçambicanos vivem hoje sem dificuldades? Vivem ou sobrevivem apenas? Onde está a luta pela igualdade que tanto propalavam? Como passaram os socialistas científicos que até fuzilaram outros cidadãos em nome do socialismo científico a capitalistas "selvagens"? Onde está a coerência da elite política e intelectual? Você duvida que fuzilaram a utopia? Eu não. Eu e a minha família sempre quisemos e apoiamos a independência, mas hoje reina grande desilusão para quem acreditava na seriedade , coerência e ética da elite dirigente e no porvir.
Tive a felicidade de ainda com tenra idade através de relações de amizade familiares , conhecer vários futuros dirigentes, muitos deles já fisicamente desaparecidos : Jacinto Ricardo, Alberto Cassimo, José Carlos Lobo, Bonifácio Gruveta, Cângela de Mendonça, Ó da Silva, Luís Beira, Osvaldo Tazama, Orlando Candua, Mário Machungo e sentia neles alguma chama de nacionalismo que não tinha nada de científico. Era genuíno. Apenas queriam o bem estar do povo. O progresso em todas as áreas da sociedade. E isso só é possível com o envolvimento de todos os moçambicanos. Mas a verdadeira reconciliação nem ainda aconteceu! Os moçambicanos ainda não se reconciliaram. Quem matou ou mandou matar , não se arrependeu, não pediu perdão, não pediu desculpas! Houve apenas acordos políticos e militares de paz , que muitas vezes não são sequer cumpridos. Duvida? Quantos críticos foram mortos? Baleados? Agredidos? Quantos oposicionistas foram assassinados? Olhe para o histórico desde o acordo de paz de Roma. Para quando a aplicação prática de todo o potencial dos cidadãos moçambicanos sem distinção? Sem discriminação de qualquer tipo? Pelo seu valor intrínseco? Quando uniremos todas as forças, as capacidades ,o potencial e a inteligência para elevar bem alto o nome do país? Outro aspecto curioso é que eu em Moçambique estudei Educação Política onde obtinha excelentes notas, até um louvor público de emulação socialista obtive , mas nessa disciplina ensinavam-nos que havia os revolucionários e os reacionários. E um reacionário não era patriota. E quem é reacionário senão o excluído, o diferente, o outro, o que não é revolucionário, o que não é socialista científico?
Pergunto-me quantos moçambicanos de grande valia não foram desperdiçados com essa lógica de exclusão?
Já agora acho curioso que ao falar da chama nacionalista, que nunca achei exclusiva dos partidários do Partido Frelimo. Conheci em Lisboa Domingos Arouca (FUMO), Máximo Dias (Monamo), Daviz Simango e Lutero Simango (MDM), Manuel Araújo(Renamo), Paulo Vahanle(Renamo) e senti neles essa chama. Uma enorme vontade de servir o país! Queriam e querem melhorar a vida dos moçambicanos. Querem o progresso de Moçambique. E isso é o melhor cartão de cidadania em toda a parte do mundo. Porque não há-de ser em Moçambique? Em qualquer país, quando a oposição é forte os dirigentes no poder esforçam-se por cometer menos erros e quando os cometem corrigem-nos. Não devia ser assim?
Sabe? Tive a felicidade e a sorte de conhecer em Lisboa numerosos dirigentes políticos e intelectuais de vários países de língua oficial portuguesa, uns em trânsito e outros exilados : Joaquim Pinto de Andrade, Gentil Viana (de Angola), Tomás Medeiros(São Tomé e Príncipe), Luís Cabral(Guiné-Bissau) ,Zeca Caliate(Moçambique), Luís Serapião(Moçambique), António Disse Zengazenga (Moçambique) , Joaquim Vaz(Moçambique) e reconheci-lhes a veia nacionalista, embora sejam de quadrantes diferentes. Nunca os diferenciei. Talvez ao Luís Cabral por ter sido Presidente e irmão de Amílcar Cabral. Mas foi uma riqueza escutá-los, aprender algo com eles e descobrir-lhes a paixão pelos seus povos e países. Em África terá de se aprender a conviver com as diferenças de pensamento, com as diferenças de projectos. Nunca existirá pensamento único. Nunca! Até nas nossas famílias existem essas diferenças, no pai na mãe , nos filhos, nas filhas, nos primos, nos tios, nos avôs ,nas avós. Não é? Porque não haveria de existir na sociedade? Mas é essa diferença que nos enriquece. Nosso trabalho para a vida é harmonizá-la.
S.M. : 6) Escreve porque sente o impulso de escrever ou porque quer entreter os leitores?
DMG: Indiscutivelmente escrevo por impulso. Portanto, para mim em primeiro lugar. Nem tudo o que escrevo está em livro, nem tudo o que escrevo publico, nem tudo o que escrevo gosto, nem tudo o que publico gosto. Mas sou um dadaísta. Um homem livre. Um pensador livre, desalinhado e desalienado.
Dadá é a afirmação plena da vida, sem códigos, nem programas, que orientem os nossos gestos e a nossa acção criativa. Dadá é a libertação imediata, é o facto vivo que, pelo seu grau de evidência, dispensa qualquer justificação teórica. O dadaísmo é absolutamente avesso à hipocrisia.
S.M.: 7)Sendo poeta, em que família literária se enquadra?
DMG : Como disse anteriormente sou um Dadaísta convicto. Sou um poeta zen. Experimentalista, mas não esteta. Embora seja apreciador do belo. Posso dizer que aprendi muito do dadaísmo com o professor Eurico Gonçalves. No entanto, escrevo muito o verso livre, não estou "preso" à métrica nem vivo obcecado com a crítica. Na verdade, até me lembro bem que sempre fui excelente aluno em Língua Portuguesa tanto em Moçambique como em Portugal , onde obtive notas muito boas, excelentes até em Língua Portuguesa ou nas Literaturas. Portanto conheço bem as regras, as figuras de retórica e tenho uma cultura geral razoavelmente boa derivado sobretudo às leituras que fiz e faço, às tertúlias que vivi e vivo desde tenra idade, ao ter sido bibliotecário e também ao meu espírito crítico, aberto e observador.
S.M: 8)Você é hoje Presidente e representante reconhecido de várias organizações literárias, culturais e humanitárias em Portugal, em Moçambique e em vários outros países. Como gere o seu envolvimento e participação?
DMG : Bem , no Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora(CEMD) sou Presidente e fundador profundamente activo. Muito do que realizei saiu da minha cabeça. Surgiram ideias e implementei-as. Mas sempre tive o apoio impagável da Vera Fornelos que me acompanhou desde sempre. Mas no essencial, mantenho viva a associação porque estou activo como nunca. Em relação a todas as outras , posso dizer que sou também membro fundador activo da AIDGLOBAL-ONGD, ALDCI-ONGD(com foco na resolução de problemas sociais , na formação, educação e desenvolvimento), ERNA e também membro nomeado da Unión Hispanomundial de Escritores no Perú, da International Mariinskaya Academy da Rússia , do World Art Games da Croácia e da Academia Cultural Luz e Literatura da República de Angola(de que sou Embaixador em Portugal e Moçambique), além de representar a AEMO (Associação de Escritores de Moçambique) e AEZA (Associação de Escritores da Zambézia) em Portugal e na Europa. Manter-me-ei nelas enquanto me sentir útil e arranjar tempo disponível. Por outro lado , tenho ainda o cargo de Presidente da Assembleia-Geral da Matriz Portuguesa importante organização em Lisboa fazendo a ponte com toda a lusofonia.
S.M.9) Pela sua intervenção no espaço público , com a independência, isenção, ética, verticalidade e altruísmo que o caracterizam tem encontrado obstáculos? Inimigos?
DMG: Obstáculos? Inimigos? Desde que comecei a intervir publicamente. Há aqui desde sempre um jogo de interesses. Muitas vezes os moçambicanos que me surgiam, queriam apenas publicar. Gradualmente começaram a querer mais. Isso nunca me incomodou verdadeiramente. Dei e dou oportunidades a gente séria. Depois abri a associação de escritores que presido ao espaço da lusofonia, sobretudo autores de países de cuja literatura pouco ou nada se fala por diversos factores. Foi aí que surgiu um guineense de que escuso mencionar o nome por toda Lisboa cultural já saber quem é. Infiltrou-se no CEMD com a incumbência de destruir a associação, destruir as edições do CEMD, destruir-me a mim e destruir a minha família. E teve apoio de moçambicanos. É o indivíduo mais abjecto que alguma vez conheci. Na verdade, desprezado por muito gente por lhe conhecerem as manhas. Foi expulso/banido da organização.
Obviamente, você calcule o que vai na cabeça de indivíduos sem cérebro. Querem a exclusividade do espaço literário e público apenas para os seus partidários ; são grupelhos que pululam e se arrastam pela Europa que sempre maldisseram em África e que prejudicam gravemente o conhecimento de outros autores de grande valor que vivem em Moçambique, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. São claramente um obstáculo à divulgação ampla das nossas literaturas. Só pensam neles próprios e nos seus egos. Tudo o que começaram a fazer agora entretanto, imitaram ou imitam a acção do CEMD(Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora) que foi fundada oficialmente em 2010, mas iniciou as suas actividades em 2008 na Casa de Goa em Lisboa com o 1º Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora. Chegam ao cúmulo de ir às páginas do CEMD ver premiados nossos para os premiarem(mesmo sem lhes conhecerem a obra) ou convidam membros nossos para as suas tertúlias, com o simples intuito de os manipularem ou procurarem usá-los contra o CEMD. Enfim uma pouca vergonha a desses indivíduos que vivem infiltrados na literatura para a tornarem menos livre e mais amordaçada.
S.M.: 9)De que forma lê a actual situação de Moçambique, como observador atento de tudo o que por lá se passa?
DMG: Objectivamente é uma situação grave. Muito grave. O problema de Cabo Delgado já não é apenas um problema de Moçambique , mas de toda a África Austral. O extremismo islâmico de que se fala actualmente, para mim nunca fez sentido nenhum. Moçambique sempre teve muçulmanos, mas nunca em momento algum houve extremismo islâmico. Portanto, a coincidência deste grupelho de terroristas ter surgido quando se inicia a exploração de novos recursos descobertos , faz-me suspeitar que se trata de jogos de interesses e poder entre moçambicanos com o envolvimento externo. Não auguro nada de bom, pois o sofrimento irá perdurar no tempo. Cabo Delgado tornou-se uma terra mártir onde decapitam crianças, mulheres e idosos inocentes. Mas infelizmente vejo apatia e indiferença das autoridades moçambicanas relativamente à gravidade da situação nessa província e um silêncio e inércia escandalosos da União Africana , da Commonwealth , da SADC e da CPLP. Não serão nunca os comunicados a fazer a diferença. Agora exige-se outra acção, outra postura e no terreno. Não é nas ruas da Europa.
S.M: Muito obrigado Delmar por se ter disponibilizado a responder às nossas perguntas.
DMG: Eu é que agradeço pela oportunidade de colaborar com o Site Macua.
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* Delmar Maia Gonçalves nasceu na cidade de Quelimane, província da Zambézia ,em Moçambique em 5 de Julho de 1969. É Presidente do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora(CEMD) e coordenador editorial e literário da CEMD Edições, além de outros cargos nacionais e internacionais na área cultural. Publicou os livros : "Moçambique Novo o Enigma";"Moçambiquizando"; "Afrozambeziando Ninfas e Deusas"; "Mestiço de Corpo Inteiro"; "Entre dois rios com margens"; "Mares de olhares em mestiçagens de poesia"; "Pa(Z)lestina"; "Fuzilaram a Utopia"; "Cosmografias do Verbo Literário(Digressões pela Literatura, ensaios e crítica)"; "Sempre tive pressa do porvir"; "Antologia dos Silêncios que Cantamos"; e "Edmar e a Montra da Loja Franca". Coordenou as Antologias "Templo de Palavras"; "Rio do Bons Sinais"; "Zalala"; "De Corpo Inteiro"; "Mares Fraternos"; a Agenda Literária "Mangwana"; os "Cadernos Moçambicanos Mangwana"; as revistas "Licungo" e "Milandos da Diáspora". Venceu o 1º Prémio de Jogos Florais da Escola Secundária da Parede em 1986; o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em Poesia em 1987; o Galardão de Literatura África Today em 2006; o Galardão Kanimambo de Literatura da Casa de Moçambique em 2008; o Prémio Lusofonia em 2017; o Galardão de Literatura Mozapaz em 2019; o Prémio Mundial César VAllejo à Excelência Cultural da Unión Hispanomundial de Escritores UHE em 2020; Foi nomeado Ambassador for Peace da IIWFP/ UPF em 2003; Recebeu o reconhecimento da Mujeres Poetas Internacional na República Dominicana em 2017,2018,2019 e em 2020: foi nomeado Membro do Concílio de Honra da Matriz Portuguesa(MPADC) em 2017; Professor Honorário de Filosofia e Literatura pela Cypress International Bible Institute University do Malawi /EUA em 2019; Académico Director para Moçambique da International Mariinskaya Academy (IMA) da Rússia em 2020 e Embaixador da Academia Cultural Luz e Literatura da República de Angola em 2021.