Especialista em assuntos africanos Fernando Cardoso entende que o Governo de Moçambique cedeu e aceita agora intervenção estrangeira para garantir segurança. Retirada da petrolífera Total terá nuances de ameaça.
Depois dos sangrentos ataques terroristas de 24 de março contra Palma, província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, a petrolífera Total suspendeu as suas operações de exploração de gás na região. Por consequência, a multinacional francesa despediu 56 mil trabalhadores e rescindiu contratos com fornecedores, afetando centenas de empresas, um baque para a frágil economia moçambicana que já levou o empresariado local a manifestar preocupação.
A suspensão das atividades em nuances de ameaça ao Governo moçambicano? O especialista em assuntos africanos Fernando Cardoso não tem dúvidas: "Claro que tem. Recorrentemente, com as novas tecnologias de pesquisa, podem ser descobertas novas jazidas de gás. O mapeamento e a descoberta de novas reservas de gás ainda não terminaram e nada nos garante que não existam outros depósitos de gás que estejam em condições mais económicas e em maior segurança para os investidores, apesar de a Total já ter gasto bastante dinheiro", explica.
"Governo mudou de opinião"
Em simultâneo com a saída temporária da Total de Cabo Delgado, os projetos de exploração de gás na Tanzânia e de petróleo no Uganda ganham novo folêgo - envolvendo a Total. Outro sinal que faz consolidar as desconfianças de que a multinacional francesa pode mesmo abandonar Cabo Delgado se Maputo não garantir segurança.
A retirada da petrolífera é desvalorizada por Maputo, que parece confiar no seu regresso. Se Moçambique não tem estrutura para vencer o terrorismo, nem com a colaboração de mercenários, e não aceita oficialmente uma intervenção militar externa, que cartada lhe resta para trazer de volta a galinha dos ovos de ouro e continuar a sonhar com um futuro promissor?
"O Governo moçambicano mudou de opinião, neste momento aceita a participação de forças estrangeiras", acredita Fernando Cardoso. "Quando um primeiro ministro diz no Parlamento o que ele disse é porque aquilo que diz tem fundamento. É óbvio que ele não podia ser mais claro, ele não podia dizer concretamente porque muito provavelmente esse foi o acordo a que se chegou", afirma, remetendo para a sessão do Parlamento desta quarta (21.04) e quinta-feira (22.04), em que o Governo foi chamado a responder às perguntas dos partidos sobre Cabo Delgado.
O primeiro-ministro moçambicano, Carlos Agostinho do Rosário, frisou na plenária que a cooperação internacional tem vindo a ser reforçada, nomeadamente com a SADC, em "diferentes domínios", entre os quais o militar, reservando o tratamento destas "matérias sensíveis" às Forças de Defesa e Segurança.
A jogada da Total não seria o único problema a tirar o sono ao Governo moçambicano. O gigante do gás Qatar é apontado como um dos que teria interesse em inviabilizar a exploração de gás em Cabo Delgado. As desconfianças sobre este país começam a deixar o campo das teorias da conspiração para ganharem algum fundamento. É que, segundo a ONG Centro para a Democracia e Desenvolvimento, o Qatar, que avança com o maior projeto de LNG (Gás Natural Liquefeito, na sigla em inglês) do mundo, avaliado em 28,75 mil milhões de dólares, poderia querer controlar o mercado, sufocando países emergentes como Moçambique.
Com suspeitas de que o Qatar poderia, então, estar a promover o terrorismo em Cabo Delgado "entramos em especulação", diz Fernando Cardoso. Mas ressalva: "Acho que é seguro dizer que se eu fosse proprietário dos poços de gás existentes no Qatar estaria satisfeito. O que não quer dizer que a minha satisfação se traduza em algo de concreto no que respeita, por exemplo, a um suporte escondido ou não de instabilidade, portanto, isso está por provar".
É caso para se vaticinar já o começo do fim da exploração do gás em Moçambique ou trata-se apenas do marco de uma nova fase marcada por renegociações de exploração, com ganhos para a Total? "Não acredito que a retirada da Total tenha a ver com ganhos futuros do ponto de vista dos acordos que já estabeleceram", responde Cardoso. "Creio que vai haver uma renegociação porque a situação mudou e não porque houvesse um objetivo de fazer chantagem de se retirar e depois pedir mais quando voltar".
DW – 22.04.2021