Em carta aberta a Berlim, investigadores relatam o drama dos ex-trabalhadores moçambicanos da Alemanha Oriental e apelam ao Governo alemão para responder a questões éticas e humanas. "Não se trata apenas do dinheiro".
A carta aberta que será entregue na próxima segunda-feira (19.04) ao Governo da Alemanha foi assinada por investigadores alemães e estrangeiros, de centros de estudos na Europa, nos Estados Unidos, em Israel e no Egipto. O documento pede que Berlim reconheça as reivindicações dos cerca de 20 mil ex-trabalhadores da antiga República Democrática Alemã (RDA).
Os "Madgermanes", como passaram a ser chamados esses trabalhadores, tiveram de regressar da noite para o dia a Moçambique depois da queda do Muro de Berlim, em 1989 - isso depois de terem trabalhado durante uma década na Alemanha Oriental, que tinha acordos com Maputo.
De lá para cá, houve muita luta dos "Madgermanes" pelos seus direitos, mas pouca resposta por parte das autoridades alemãs e moçambicanas.
"Não se trata apenas do dinheiro"
Os ex-trabalhadores moçambicanos exigem reformas e compensações nunca recebidas. Mas não só: a carta aberta da comunidade académica expõe também o racismo e a desigualdade de género pelos quais muitos passaram na antiga Alemanha Oriental.
Isabel Enzenbach, da Universidade Técnica de Berlim, estuda a imigração na época da RDA e é uma das responsáveis pelo documento. Em entrevista à DW, a investigadora disse que, "definitivamente", os temas de preconceito são exigências que o Governo alemão deve tratar.
"Não se trata apenas de dinheiro e é importante que os seus esforços de trabalho sejam reconhecidos. Eles vieram para a RDA para apoiar o seu país, Moçambique, e agora não são considerados muito bem, pelo que a dimensão simbólica não deve ser subestimada, é uma parte importante", afirmou a investigadora alemã.
Uma questão moral
O sociólogo moçambicano Elísio Macamo, da Universidade de Basileia, na Suíça, também assinou a carta aberta em apoio aos "Madgermanes". "Esta carta está a levantar uma questão moral, que tem a ver com o relacionamento entre a RDA e Moçambique", destacou Macamo.
Segundo o sociólogo, "os acordos que foram feitos naquela altura, sobretudo os acordos que tinham a ver com a liquidação das dívidas moçambicanas, foram injustos, não deveriam ter sido feitos daquela maneira".
Por isso, continua Elísio Macamo, "o Governo alemão deve assumir responsabilidade por isso. É esse o apelo moral que está a ser feito e acho que é justo, mas ele não implica necessariamente que o Estado alemão não tenha feito muito do que era necessário fazer. Ele fez".
O sociólogo refere que o pagamento que a priori deveria ser enviado para Moçambique aos trabalhadores regressados não saiu da Alemanha. "Houve uma operação fictícia, que os Bancos Centrais faziam, que consistia em transferir o dinheiro para Moçambique, mas, ao mesmo tempo, o dinheiro era devolvido para o serviço da dívida que Moçambique tinha contraído, pois houve vários investimentos que foram feitos pelo país com a ajuda da Alemanha do Leste. Portanto, esse dinheiro não saiu da Alemanha para Moçambique. A esperança que o nosso Governo tinha era que havia de ter capacidade financeira para que, quando os moçambicanos regressassem, eles fossem pagos", explicou.
Há anos os "Madgermanes" protestam pacificamente em várias cidades moçambicanas (Foto de arquivo/2009)
Elísio Macamo lembra, porém, que há valores que foram pagos a Moçambique pela Alemanha unificada na década de 90 e já nos anos 2000 para ajudar a resolver a situação dos ex-trabalhadores da RDA, mas: "O destino desses dinheiros é o que a gente não sabe".
Diálogo com a participação dos "Madgermanes"
A carta aberta dos investigadores endossa o memorando da conferência dos "Madgermanes" realizada em 2019 na cidade de Magdeburgo, na Alemanha. Na ocasião, deu-se um primeiro passo para o diálogo.
Em entrevista à DW, a investigadora Isabel Enzenbach disse que "o tempo é um fator importante e a mediação poderia provavelmente ser mais rápida do que um processo legal".
No entanto, "é importante que não seja uma mediação entre o Governo alemão e o Governo moçambicano, mas que os Madgermanes sejam apresentados e tenham algo a dizer sobre o processo", ressaltou a investigadora da Universidade Técnica de Berlim.
Elísio Macamo vê também no diálogo um caminho para tentar responder às reivindicações dos "Madgermanes". E diz que "ficaria satisfeito sabendo que o Governo de Moçambique – e o Governo atual não tem nenhuma responsabilidade do que aconteceu, apesar de ser do mesmo partido – abrisse um diálogo com essas pessoas e encontrasse formas locais de dar uma perspetiva às pessoas que perderam muito com esse problema".
No entanto, o sociólogo tem os pés no chão:
"Eu espero que o Governo alemão responda, pois apesar de tudo é um Governo que age de acordo com algum padrão ético. É sensível a uma argumentação que faz apelo à ética. Já não tenho a mesma esperança em relação ao nosso país, porque esse argumento ético pode não funcionar assim tão bem num contexto político onde o respeito pela dignidade humana não constitui o valor mais importante. (...) Estou mais esperançoso em relação aos alemães que em relação aos moçambicanos".
Mais transparência
Após tantos anos de espera pelas compensações e explicações do lado alemão e do lado moçambicano, muitos "Madgermanes” já faleceram e deixaram filhos e outros dependentes. Por isso, os investigadores defendem uma atualização na lista de ex-trabalhadores da RDA.
Isabel Enzenbach diz que é preciso "mais investigação para obter melhores dados, para saber quem tem reivindicações legítimas, porque há pouca transparência".
"Temos de trabalhar na transparência e definitivamente não devemos perder mais tempo", considerou a investigadora alemã em declarações à DW.
Para Elísio Macamo, o drama dos "Madgermanes" é "uma história muito triste" e "interessante", que mostra como dois países distantes tornaram-se irmãos.
"Há tantos alemães de origem moçambicana, por um acidente histórico. Então, isso é preciso considerar. Eu costumo encontrar jovens alemães que têm um pai moçambicano, mas não sabe onde ele está, não o conhece. Fazer um levantamento seria muito bom também ao nível pessoal", concluiu Macamo.
DW – 16.04.2021