O terrorismo islâmico procura em Moçambique terra virgem, com tesouros naturais, e o objetivo não é o de proporcionar violência real aos media e às redes sociais. Pretende um avanço, expansão, o silêncio do governo moçambicano e dos media não teve êxito, pelo contrário, facilitou a tarefa
As imagens recebidas do norte de Moçambique cruzam o cenário de destruição provocado pelo terrorismo islâmico, o grande inimigo da cidadania global, associações de pequenas e grandes bombas, um pouco por todo o mundo. Terroristas que circulam, homens e mulheres falhados, não conseguiram ser globais.
Palma lembra as reflexões de Sontag sobre fotografia e documentários de guerra, a oportunidade do momento, o perigo de olharmos à distância e sentirmos compaixão, emoção instável, definha pela ausência de ação, esta exige empatia, cumplicidade. As populações vão e vêm, não têm para onde ir. Pacto ou censura, os fotógrafos e operadores de câmara não ofereceram aos terroristas o prémio das imagens mais cruas sobre a violência real.
A compaixão vai definhar, mas há interesses económicos interrompidos, há capitalismo global, há atores e doadores internacionais, há orgulho do poder moçambicano, há nacionalismo e dependência na gestão dos recursos naturais, há sofrimento na população no norte e indignação nas redes sociais, do Rovuma a Maputo.
Vemos figuras de coisas, significam outras coisas, sabemos do petróleo (gás natural), das maiores explorações do mundo, há notícias alarmantes de abandono da exploração pela Total, talvez apenas suspensão da exploração, a exploração do petróleo não se faz num ápice. Comenta-se o terrorismo, virá em busca do petróleo, o novo olho de Hertzog, cem anos depois, na mesma região do mundo. O Fundo Monetário Internacional urge o governo moçambicano a agir, o governo adia o pedido de ajuda internacional, catástrofe económica anunciada, a juntar-se à humanitária e à pandemia.
É uma tragédia, revela contornos diferentes dos habituais e merece séria reflexão pela comunidade internacional: o capitalismo global e a sua ética; a combinação desta com o nacionalismo dos recursos naturais; os propósitos do terrorismo islâmico ao encontrar terra virgem; o reassentamento das populações anteriormente afetadas pela exploração do petróleo.
No capitalismo global, firmado na ideia da cidadania universal, as relações económicas entre diferentes países e culturas são a base de uma ética mundial de negócios, transposta ou exigida por lei, o compliance é cartão de visita das multinacionais. Obrigações ambientais e laborais, independentemente do local de atividade, são o exemplo mais vistoso da proclamada ética do capitalismo. O Código do Capital de Katharina Pistor traz-nos a outra versão: não há capital sem lei, só a lei dá prioridade, durabilidade, universalidade ao capital: protegendo os investimentos, os acionistas, e perpetuando o poder do capital.
Nas últimas décadas, a exploração dos recursos naturais tem gerado manifestações nacionalistas e a ética do capitalismo global assume traços únicos na lei: recaem sobre o investidor as obrigações de construção de vias de acesso aos projetos; a reparação de vias férreas, condição para escoamento do produto; reservas para desmobilização, ao terminarem a exploração, as empresas devem cuidar dos resíduos danosos para o ambiente, a expensas suas; o valor do petróleo é medido na flange de entrada; o petróleo chega à superfície e paga imposto, é tributado o produto bruto e não líquido de gastos; há impostos sobre as mais-valias obtidas fora do território por especuladores, afinal os recursos naturais pertencem ao território e ao seu povo; o imposto sobre o lucro está na lei, mas esse é incerto. Há ainda obrigações sociais, construção de escolas e hospitais, reassentamento das populações.
A lei moçambicana tem tudo isto, assegura ainda uma quota parte do emprego a nacionais, e há quase uma década o governo sentou à mesa os investidores para os obrigar a pagar as mais-valias especulativas. Os grandes projetos de exploração do petróleo em Moçambique estão a ser preparados desde 2011, organizações internacionais, petrolíferas, doadores, sociedade civil moçambicana, governo, todos confluíram para fazer dele um processo transparente, exemplar. Os contratos de produção de petróleo envolvem um gigantesco trabalho de pesquisa e avaliação, partilhas de produção, divisão de gastos, gasodutos de grande escala, definição dos preços e venda do gás natural, receitas e estabilidade fiscal. Investimentos com altos e baixos.
A exploração do petróleo em Moçambique é um paradigma do capitalismo global, de atores cooperantes, no mundo cristalizado descrito por Sloterdijk, onde os interesses pessoais são compensados reciprocamente. O terrorismo interrompe a comunicação entre estes atores, é um movimento unilateral.
Os acontecimentos em Moçambique ultrapassam o cânone do terrorismo no ocidente, cujo propósito é o medo, um ataque aos costumes liberais. O terrorismo islâmico procura ali terra virgem, com tesouros naturais, e o objetivo não é o de proporcionar violência real aos media e às redes sociais, a violência não é um simples mecanismo de marketing. Pretende um avanço, expansão, o silêncio do governo moçambicano e dos media não teve êxito, pelo contrário, facilitou a tarefa.
E finalmente, o terrorismo põe a nu a tragédia das populações atacadas, mas esconde a tragédia dos reassentamentos. Devido à exploração do petróleo, a lei moçambicana prevê a deslocação ou transferência da população afetada pela execução dos empreendimentos económicos, de um ponto do território nacional para outro. Essa deslocação deve ser acompanhada da restauração ou criação de condições iguais ou acima do padrão de vida anterior. Sabe-se quantas famílias foram reassentadas em Moçambique? Para onde foram deslocadas? Que ocupação passaram a ter? Se as empresas cumprem as suas obrigações legais de reassentamento? Se as organizações internacionais fiscalizam o cumprimento dessas obrigações? Ou se o governo o faz? Se essas populações reassentadas são alvo do terrorismo ou se escaparam ao mesmo? Quem fiscaliza a ética mundial dos negócios?
“África nos nossos dias. A paisagem é uma ilusão constante. A cenografia representa a luta entre o irreconciliável. As personagens principais desta peça são os negros. Mas esses não são visíveis” (didascália de Os Antílopes, de Henning Mankell)
EXPRESSO(Lisboa) – 26.04.2021