Cabo Delgado Islamitas radicais continuam a semear violência e morte na província do norte de Moçambique. É na Tanzânia que recrutam operacionais e planeiam ataques
A Tanzânia é dos países mais frágeis do mundo, ocupando o 61º lugar no Índice de Estados Frágeis, onde o mais resiliente é a Finlândia (178º), segundo a organização Fund for Peace. Mas está, de longe, melhor do que os seus vizinhos também flagelados pelo terrorismo, como Moçambique (27º), Quénia (29º), Uganda (24º) e República Democrática do Congo (5º).
Para se ter a ideia da importância de Tanzânia para Moçambique, é preciso recuar até 1962, quando aquele vizinho a norte acolheu a criação da Frelimo — partido que governa Moçambique desde a independência — e apoiou a sua luta contra a colonização portuguesa. A memória leva grande parte dos dirigentes moçambicanos a considerar a Tanzânia o seu segundo país. Foi lá que o atual Presidente, Filipe Nyusi, cresceu e começou a estudar.
Ainda hoje a Tanzânia alberga uma considerável comunidade moçambicana, que se refugiou durante a guerra de libertação nacional (1962-1975) e a guerra civil (1976-1992). As populações fronteiriças preservam manifestações culturais comuns: mesmos hábitos, mesma religião dominante (Islão), mesma língua-mãe (suaíli). Se, porém, e Tanzânia foi outrora berço da Frelimo, hoje é-o de redes terroristas. O último ataque à vila de Palma, que gerou combates que se estenderam até quarta-feira, foi preparado na Tanzânia, quando em Moçambique se anunciava a fragilidade do grupo terrorista.
Grande parte dos dirigentes moçambicanos considera a Tanzânia o seu segundo país. Foi lá que o atual Presidente cresceu e começou a estudar
Como refere o jornalista português Nuno Rogeiro no livro “Cabo do Medo”, a Tanzânia “também se mostrou um elo especial para a logística — inclusive em armas e equipamentos — de qualquer grupo que quisesse atuar no norte de Moçambique, com sub-clãs inteiros vivendo nos dois lados da fronteira do Rovuma”, o rio que separa os dois países.
O advogado moçambicano Damião Cumbane sugere que a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) e a União Africana deviam questionar o papel da Tanzânia na guerra terrorista contra Cabo Delgado, no extremo norte do Moçambique, que a seu ver não existiria sem colaboração, cumplicidade e apoio logístico tanzanianos. “Não há barco ou veículo que saia da Somália ou República Democrata do Congo sem navegar nas águas territoriais da Tanzânia ou escalar as suas aldeias. As armas que abastecem os terroristas, que matam moçambicanos e condicionam a exploração do gás do Rovuma, antes de começarem a matar, atravessam a Tanzânia”, comenta Cumbane.
AL-QAEDA PRESENTE DESDE 1996
Rogeiro afirma que a Tanzânia tem uma enorme rede jiadista desde que a Al-Qaeda lá se instalou, em 1996. “Foi perseguida e desmantelada com os atentados de 1998 [contra as embaixadas dos Estados Unidos na Tanzânia e no Quénia] e de 11 de setembro de 2001, mas reconstruiu-se na passada década, e passou para o Daesh nos últimos cinco anos. O Estado tanzaniano não tem meios para controlá-la e há estruturas locais e regionais infiltradas e corrompidas.”
Essas estruturas são nós de estrangulamento não só na Tanzânia, como em Moçambique. O início da insurgência podia ter sido combatido muito antes de se ter consolidado. O Governo tanzaniano foi informado pela comunidade islâmica de Mocímboa da Praia, Macomia e Pemba (vilas de Cabo Delgado assoladas pelo terrorismo), mas foi hesitando em atuar de imediato, afirmando que se tratava de “questões internas” daquela religião.
Numa investigação entre 2017 (agosto, antes dos ataques) e 2018 (julho, durante os ataques), membros das alfândegas de Moçambique confidenciaram ao Expresso que pela fronteira de Namoto, entre Moçambique e a Tanzânia, entravam valores avultados em dólares, alguns em maletas, presumivelmente de investidores estrangeiros. Agentes recebiam ordens para não fiscalizar certas viaturas. Era daquela fronteira terrestre e marítima que passavam para o exterior veículos com dinheiro, drogas, minérios como rubis ou ouro e contentores de madeiras e outros produtos. Esse tráfico envolvia tanzanianos e quenianos com fortes ligações à elite política e económica moçambicana.
O grupo começou a distribuir dinheiro aos jovens para abrirem negócios, e muitos fizeram-no. Iniciou-se, assim, a primeira onda de recrutamento. Devido a divergências com o islão tradicional, que levaram à sua expulsão, já tinham iniciado a construção das suas próprias mesquitas e madraças (escolas religiosas).
COBERTURA OFICIAL
Estas relações entre elites e estruturas corrompidas condicionaram a intervenção do Estado moçambicano contra as células terroristas em criação. Um dos xeques que o Expresso entrevistou em 2018 contou que quando o primeiro professor de madraça e um pregador, oriundos da Tanzânia, iniciaram palestras no centro de Mocímboa da Praia, estavam presentes o presidente da Câmara, representantes do governo local, membros da polícia e dos serviços de informações do Estado e grande parte dos líderes muçulmanos locais.
O professor de madraça, que identificaram como sendo Chakur, permaneceu em Mocímboa quase um ano, lecionando aulas corânicas. Viria a ser detido, multado em 15 mil meticais (cerca de €160) e deportado para a Tanzânia. O pregador, de nome Omar (a fonte do Expresso desconhece o apelido), esteve pouco tempo na vila e também foi deportado.
O ataque à vila de Palma, esta semana, era pouco esperado, pois as informações que circularam dias antes indicavam que as autoridades moçambicanas e tanzanianas tinham conseguido cortar a linha de abastecimento dos terroristas e que os seus financiadores estavam descapitalizados, tendo dado instruções aos homens para abandonarem a guerra. Foram três meses de relativa calma, com ataques terroristas residuais, sobretudo após o encontro, em janeiro, dos Presidentes Nyusi (Moçambique) e John Magufuli (Tanzânia, falecido este mês). Mas a incursão em Palma revelou o contrário: o grupo está bem vivo e reabastecido. Não há dados sobre o número de mortos, os combates continuavam à hora de fecho desta edição, oito dias após o início do ataque.
Este, o maior desde o início de insurgência, foi preparado por um grupo de cerca de 300 homens que estava na Tanzânia, revela Rogeiro, acrescentando: “Como em 2020, a Quaresma e a Páscoa eram objetivos temporais. A campanha contra Metuge e tentativa de tomar Pemba ou objetivo semelhante repete-se.”
Esta informação reforça a ideia de Cumbane de que não se pode dissociar a Tanzânia dos acontecimentos de Cabo Delgado. “A não ser que também tenhamos gente com rabo preso nesta história, é chegado o momento de o nosso Governo chamar o embaixador da Tanzânia em Maputo para se explicar e informar-nos em público da posição e ações concretas da Tanzânia.”
As relações entre elites e estruturas corrompidas condicionaram a intervenção do Estado moçambicano contra as células terroristas
Segundo Nuno Rogeiro, o encontro entre Nyusi e Magufuli “correu bem em promessas de cooperação, mas a morte do general [Eugénio] Mussa, que comandava o teatro operacional do norte, e a doença prolongada e morte de Magufuli fizeram a cooperação piorar. Os homens do bando escondidos nas matas puderam refazer os stocks e manter o grosso do contingente intacto”. Para o efeito, acrescenta, os terroristas criaram uma rede de caçadores furtivos nas reservas a ocidente de Cabo Delgado (obrigados a caçar porque tinham famílias reféns) e houve ordens para espalhar o bando na província em pequenos grupos: cada um por si. Foi assim nos últimos três meses. Os pequenos grupos foram fazendo assaltos às aldeias ainda habitadas.
CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS ADVERSAS
O clima não favorecia os terroristas. Os meses de janeiro a março são caracterizados por chuvas intensas e subida de caudais de rios, lagos e ribeiras, o que dificulta a passagem. Durante esse período as forças armadas “tomaram conta das ofensivas ar-terra”, explica Rogeiro, o que levou o grosso dos terroristas a refugiar-se a norte de Nangade e na Tanzânia. Acrescenta que Moçambique começou a usar mais forças especiais e “a ausência de população nas zonas de combate tornou impossível ao bando misturar-se com massas de civis”.
A solução passa por envolver a Tanzânia. Tal dificultaria a logística e o reforço do grupo jiadista. Para isso é preciso identificar interesses da Tanzânia no jogo. Diversos analistas afirmam que o país — em conflito com o vizinho Malawi sobre delimitações de fronteiras — quer uma fatia do bolo no negócio de gás na fronteira marítima (Palma). Os serviços secretos da África do Sul dizem haver uma dezena de sul-africanos envolvidos no ataque a Palma, recrutados em território sul-africano. O que reforça a ideia de que existe uma rede de recrutamento.
EXPRESSO(Lisboa) – 01.04.2021