Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola
Hoje, vou tratar de duas identidades supranacionais ou transnacionais negro africanas: a negritude e o pan-africanismo. Negritude e o pan-africanismo são dois dos meus temas de estudo e militância. E, pela sua importância, eu quero fazer isso principalmente, através de algumas obras; as obras do Leopoldo Sédar Senghor, principalmente «O Contributo do Homem Negro» na tradução portuguesa, e também algumas obras de N’kwame N’krumáh, «Eu Falo de Liberdade» um trecho, e também um pequeno trecho do «neocolonialismo» na tradução portuguesa.
Lembrando, os dois Senghor e N’krumáh foram os primeiros Presidentes, respectivamente do Senegal e do Gana, quando esses países se tornaram independentes. Os dois são líderes de independências desses países. Muitos consideram esses dois conceitos; negritude e pan-africanismo duas coisas distintas. A negritude que foi criada pelo Senghor e pelo Aimé Césaire muitos consideram um movimento paralelo, separado do pan-africanismo que teve como seus principais líderes o N’krumáh.
Sendo a negritude, uma expressão francófona, enquanto o pan-africanismo seria uma expressão anglófona. Mas, eu vou apresentar aqui a negritude como parte de algo mais amplo do que seria o pan-africanismo. Ou seja, a negritude como uma corrente, como algo que faz parte das reflexões do pan-africanismo integrado a esse movimento intelectual.
A negritude, eu considero a negritude, uma das principais correntes do pan-africanismo no seu momento de formulação particularmente entre os anos [30] - [60] do século [XX]. Os autores da negritude nunca prescindiram na criação de conceito da geração anterior do pan-africanismo, e eles efectivamente disputaram espaço no interior do movimento pan-africanista do seu tempo com outros autores, outros líderes maiores de origem anglófona ou das colónias europeias anglófonas.
Vou começar tratando da negritude e vou falar algumas coisas mais gerais sobre a negritude, que vão servir para o pan-africanismo como um todo. Devo lembrar, que a negritude é uma invenção, de autores que são sociológica e geograficamente deslocados. Uma invenção de negros assimilados das colónias francesas na África e no Caribe, que se perceberam negros fundamentalmente ao se deslocarem para París [França] nos anos de 19[30].
O sentimento de exílio é algo constitutivo da literatura da negritude, portanto, há dois movimentos concomitante para esses autores da negritude. O seu descolamento da massa dos colonizados na direcção duma classe intermediária em gestação, formada nos valores franceses para actuar como mediadores entre colonizadores e colonizados, e também o seu deslocamento para o centro metropolitano como uma condição para concluir a formação superior e se tornarem parte desse grupo de chamados pela metrópole francesa dos assimilados.
Destarte, o descolamento sociológico, que eles sofriam os distinguia dos outros africanos e caribenhos, tornando-os de certo modo franceses, de certo modo. Mas, o deslocamento geográfico os tornava irremediavelmente negros entre os brancos, ou seja, nunca inteiramente franceses. A consciência de ser negro era ainda mais [dramática] devido a esse deslocamento geográfico, que eles faziam mais do que, seria pelos esporádicos contactos com os colonos no país natal. Se deparar com o racismo no quotidiano era perceber a limitação do processo de assimilação que nunca chegaria a se completar em qualquer caso por sua intrínseca impossibilidade.
A negritude, também pode ser entendida como o rompimento com esse dilema, como a positivação de toda a negatividade que eles recebiam, através do racismo que eles passaram a sofrer fundamentalmente nesse deslocamento da metrópole para o centro do sistema. Não se deve desconsiderar, que esses intelectuais em esforço de reafricanização estão distantes não apenas geograficamente dos seus conterrâneos, mas sociologicamente e psicologicamente, porque eles nunca vão deixar de ser intelectuais assimilados.
Resumindo, a negritude é uma criação híbrida. Híbrida em qualquer sentido que se queira discutir, uma criação de autores que estão na fronteira, no limiar entre dois mundos. Eles buscam produzir identidade negro-africana, em grande medida, a partir de referências europeias e vêem esse negro africano, através da releitura de uma invenção europeia, o africano desde aquele mito do bom selvagem no século [XVII] com Montaigne, até a visão do homem primitivo da escola dorcamiana já no século [XX].
Mas, é importante frisar, que se muitas das referências e estruturas utlizadas nesse processo de criação de reafricanização, de criação do africano, de identidade africana, de negro-africano se muitas dessas referências e estruturas são europeias; cristianismo, o discurso académico, a poesia há uma adaptação desses elementos. Uma africanização nesse sentido, porque afinal seus autores marcados pela dupla consciência entre o universal e a diferença, divididos entre a dupla consciência, que é um conceito que foi formulado pelo William Du Bois, um autor fundamental na reflexão e formulação do pan-africanismo.
Os antecedentes da negritude, também podem ser encontrados, além do Du Bois, já mencionado nas primeiras décadas do século [XX] e em outras iniciativas de valorização da identidade negra particularmente no movimento norte-americano chamado Harlem renaissance, que tinha como um dos seus expoentes Alain Locke e também no negrismo hispano-caribenho, que teve como seu principal expoente Nicolas Guelhem‚ cubano.
Repare! Esses antecedentes são todos da diáspora, portanto não são africanos, são da diáspora. O que veio propriamente a ser conhecido como negritude, surgiu ao longo dos anos [30], a partir das obras de Aimé Césaire originário da Martinica, do Leopoldo Sedar Senghor já mencionado originário do Senegal e do Léon Damás originário da Goiana francesa. Lembrando, eles se reuniram, a partir de 19[34] em torno da Revista «O Estudante Negro» em París.
O termo negritude, se impôs por iniciativa e insistência do Césaire, é uma criação do Césaire. Fundamentalmente é um desejo de inverter, positivar o termo que era negativo, esse termo do negro; négre em língua francesa. Négre, tinha uma conotação negativa como seria talvez em português crioulo ou como era níguel em inglês.
Destarte, Césaire pegou o négre e criou essa palavra, esse termo negritude e disse que, o que vai ser uma ideia seria usada nos Estado Unidos [EU], depois nos anos [60], «que o negro é lindo». O termo negritude se impôs por iniciativa de Césaire e se notabilizou na primeira edição da sua poesia «O Diário de Um Retorno ao País Natal» e logo a seguir no texto «O Contributo do Homem Negro» do Senghor. Os dois textos «O Diário de Um Retorno ao País Natal» e «O Contributo do Homem Negro» são de 19[39].
A seguir, vou resumir aqui o texto que era uma das leituras obrigatórias «O Contributo do Homem Negro». Nesse texto de 19[39] Senghor insistiu em articular a negritude a um conteúdo filosófico como; a soma total dos valores da civilização do mundo negro, uma ontologia, uma estética, uma epistemologia, uma política, uma organização social, uma organização política, uma particular concepção de democracia e… tudo mais.
Por isso, essa obra acabou se tornando um alvo principal de críticas ao movimento o que levou Senghor a passar o resto da sua longa trajectora até os anos [90] e até ao final do século procurando reelaborar e [refinar] aquela reflexão inicial. Lembrando, que a trajectora de Senghor é muito marcante talvez o principal escritor e poeta negro do século [XX], um dos maiores escritores de língua francesa do século [XX], membro da Academia francesa, primeiro Presidente do Senegal por [20] anos, formulador da negritude, do socialismo africano, da francofonia e… mais um monte de coisas.
Bom! Nesse trabalho especificamente de [39] Senghor basicamente defendeu a existência duma cultura negra, que sobreviveu na África e também na diáspora, depois do fim sobreviveu ao que ele chamava de civilização negra anterior a conquista, anterior ao colonialismo e anterior a escravidão moderna. Nesse texto, Senghor procurou delimitar as suas características.
Destarte, cultura seria derivada segundo ele da raça, da tradição e do meio. Quanto ao que definiria aquela cultura, Seghor apresentou o negro como; sensual, sensível, emotivo, rítmico e natural. Ou seja, o negro estaria para Senghor em oposição ao utilitarismo, a praticidade, ao artificialismo, ao individualismo. Nesse sentido, essa identidade negro-africana do Senghor se parece um pouco com identidade latina do Paulo Freire, é uma identidade que se opõe ao mercantilismo, ao capitalismo, ao individualismo, ao consumismo, a praticidade. Uma identidade, portanto que se opõe ao que era para esses autores todos era decadente na modernidade na civilização ocidental.
Então, essa identidade negra, seria a base para a transformação ou para criação duma nova civilização, que para ele mais tarde vai associar ao socialismo, ao socialismo africano que seria diferente do socialismo europeu ou soviético.
Para Senghor agora cito «a emoção é negra, como a razão é helénica». Senghor não argumentava nesse trecho, que a razão fosse uma característica menos presente no negro por uma determinação física ou metafísica, mas porque segundo ele e cito «a sociedade negra não se preocupou muito em desenvolver a razão e, é uma lacuna».
Esses trechos, são os que Senghor, vai ter que repisar muitas vezes e justificar-se muitas vezes. Essa ideia, de que, «a emoção é negra e a razão é helénica». Contudo, nesse texto de [39] o que Senghor está fazendo efectivamente, é um elogio do negro na sua visão romântica. Ou seja, na visão romântica do Senghor, «a emoção é bom e a razão é funesta». Realmente é isso, entre outros motivos justamente, porque o negro não seria tal racional na medida em que, o racionalismo seria um dos males da modernidade.
A modernidade, para Senghor era algo desumanizado, algo artificial, algo desespiritualizado. Trata-se, então duma invenção de caracteres com estratos negativos na antropologia, cientificismos, na sociologia; estava-se naquele racialismo que vinha sendo produzido na segunda metade do século [XIX] e iniciou do século [XX].
É uma inversão, que era visto como negativo e Senghor vê como positivo, mas ele não desconstruiu a estrutura, ele inverte simplesmente ele faz uma [antítese], ou seja, trata-se duma inversão de caracteres, estratos negativos que pelo Senghor são vistos positivos. É uma crítica romântica a modernidade e isso, fica evidente no encerramento do texto. Cito: «receio muitos que actualmente reclamam pelos gregos traiam Grécia. Traição do mudo moderno, que mutilou o homem dele fazendo uma animal racional ao sacraliza-lo como Deus da razão. O problema todo é com Descartes»
Volto a citação do Senghor. «O serviço negro terá sido de contribuir com outros povos para refazer a unidade do homem e do mundo, refazer a unidade do homem e do mundo, do homem com a natureza para ligar a carne ao espírito, o homem ao seu semelhante; atenção a pedra a Deus. Dito doutra forma o real ao sobre real, através do homem não como centro, mas como charneira como umbigo do mundo»
Apesar da ênfase culturalista e social em alguns momentos do texto a raça em Senghor ganha proeminência [relevo]. Na concepção senghoriana de raça actua metafísica, actua um espírito, actua uma alma mais que propriamente caracteres biológicos. Esses caracteres biológicos aparecem aqui e ali na obra do Senghor contra Joseph de Gobineau. Não é o central, o centro dele é cultura e sociedade. Ele fala de um espírito às vezes uma metafísica no sentido religioso.
Uma alma negra, mas quase nunca ele se refere a caracteres biológicos. Esses caracteres biológicos, também não aparecem nas obras do outro grande formulador da negritude o Césaire, aparece um pouquinho no Senghor, mas nunca aparece no Césaire. A argumentação de Césaire é muito mais económica e social. Também, não aparecem os caracteres biológicos na obra do maior líder do pan-africanismo das décadas seguintes o nosso queridíssimo e enorme N’kwame N’krumáh.
Manuel Bernardo Gondola
Em Maputo, aos [23] de Maio de 20[21]