Por Xavier de Figueiredo
A corrupção é o mal dos males, de par com outros, como a burocracia e a limitada independência da justiça, reveladores de que as reformas pecaram por falta de profundidade ou não foram tomadas.
O seu nome é o mais fustigado nas palavras de ordem vociferadas nas manifestações de protesto em Luanda ou no Lubango. Na lamúria sem fim das zungueiras (vendedoras), valendo elas por todos os “coitados” atormentados com a subida constante dos preços, a falta de emprego e mazelas assim; ou no queixume de gente da classe média preocupada com coisas como a erosão constante dos seus rendimentos ou o passo de caracol em que, por falta de investimento, avança a diversificação da economia – também não falta quem, de dedo em riste, o aponte como responsável pelos males que a todos afligem.
Se as redes sociais servem de barómetro para coisas que tais, então há que reconhecer que são muito mais os que o censuram do que aqueles que o defendem. Mesmo entre os estrangeiros, repartidos entre cooperantes, diplomatas ou homens de negócios com interesses instalados, também não faltam comentários ou simples desabafos de decepção em relação a coisas como aquilo que, afinal, se considera ser a tibieza do seu espírito reformista. E como Angola, a braços com problemas só resolúveis através de ousadas reformas, precisava que ele se tivesse revelado mesmo reformador que prometera ser!
Não é muito o que sobra das gordas e generalizadas esperanças de mudança que marcaram os primeiros tempos do consulado de João Lourenço como PR de Angola. É dele que se trata. O homem que substituíra, José Eduardo dos Santos, estava no poder há quase 40 anos. Se o fim da fadiga e da desesperança de vê-lo ali, ao longo de tanto tempo, metido na sua torre de marfim, cortejado por bandos de interesseiros bajus (bajuladores), feito senhor absoluto de um regime minado pela corrupção, quase bastava para tornar auspiciosa a chegada de quem quer que viesse a seguir, muito mais ainda quando aquele que veio prometia acabar com a corrupção e o nepotismo.
Angola nasceu mal, fruto de uma descolonização desastrada. Marcadas por outros males foram também as quase cinco décadas que vieram a seguir – até aos dias de hoje. O estado em que o país se encontra não engana: o seu futuro depende vitalmente de grandes reformas. No seu conjunto capazes de “simples milagres”: assegurar a instrução da população e distribuir bem a riqueza; pôr o Estado a funcionar como deve ser e levar dinamismo à economia. No senso comum da população, nenhuma reforma é, porém, tão importante como a da extirpação da corrupção – olhada como causa mestra de todos os seus males, das injustiças às desigualdades.
A euforia e o alento que foi vê-lo, feito “exonerador implacável”, como também passaram a chamá-lo, a mandar pôr termo às sinecuras de uma caterva de dirigentes e gestores públicos, geralmente tidos na conta de “gatunos”. Fora assim que se haviam habituado a olhar para eles os 70% de pobres a cuja observação não escapava a ostentação do seu estilo de vida, quase todos metidos em luxuosos condomínios com muros de quatro metros de altura e quintais pejados de “bombas” das quais não faziam parte nem Mercedes nem Audis. Só daí para cima.
O aplauso que a cruzada anti-corrupção de João Lourenço fez despontar não se limitou, todavia, ao plano doméstico. Uns a seguir a outros, sucedem-se dirigentes políticos, responsáveis de instituições financeiras internacionais, empresários e activistas de causas como a boa governação e a transparência, que do estrangeiro o felicitam e encorajam a levar por diante as suas reformas. Merkel e Macron afiançam-lhe que num ambiente sem corrupção não faltarão investidores que se deixarão atrair por oportunidades de negócio em Angola.
Naquele ano de 2017, o da transição presidencial, fazia já três que levava de duração a mais grave crise petrolífera que se abatera sobre Angola. O gigante com pés de barro que a crise revela dá que pensar. Angola vive um clima de paz completa desde 2002. Que destino terá sido dado aos milhares de milhões de dólares gerados pelo petróleo (145 mil milhões em 2013), para agora se verificar que, afinal, a economia angolana se esgotava no petróleo? A tão propalada diversificação da economia, destino de muito propalados investimentos, afinal não passava de uma miragem. Coisas que se iam sabendo por aqueles tempos confirmavam o que se conjecturava: a corrupção absorvera parte do dinheiro do petróleo.
Os dias e os meses cheios de coisas cheias que começaram a correr depois daquele em que João Lourenço se apresentou no mausoléu de Agostinho Neto para a sua solene investidura, foram de confirmação das razões do ambiente de festa que rodeou a sua chegada à “suprema magistratura do Estado”. Ninguém ficou indiferente a pormenores como o reduzido aparato da sua escolta nos movimentos de circulação em Luanda ou como a descontração com que se apresentou numa conferência de imprensa nos jardins do palácio. E como encheram os olhos de toda a gente aquelas fotografias que o apresentavam no Mussulo, de calções e sem vestígios da presença daqueles “anjos da guarda” de ar marcial de outrora!
Se o estilo de “Jiló” (passara a ser tratado assim, carinhosamente) cativava pela simplicidade, a descompressão política e social em que o país entrou, de certeza por via de “orientações” suas, essa também foi pasto de aplausos. O direito à greve e à manifestação deixara finalmente de ser uma figura da Constituição sem tradução na prática. A postura submissa da comunicação social em relação ao regime dera lugar a outra, mais irreverente. Os ministros levados aos telejornais deixam de contar com o “fretismo” dos entrevistadores que agora os apertam. Os defeitos da construção e das obras públicas chinesas passam de tema tabu (nada contra a China) a assunto de reportagem. Era o “novo homem” a cumprir outra promessa da sua campanha – uma informação mais plural.
Escolhido por Santos, mas “senhor de si”
Na autocracia perfeita que foi a de José Eduardo dos Santos, a escolha do seu substituto não podia ser-lhe estranha. A sua inclinação por João Lourenço, começada a notar dois anos antes, parecia desprovida de sentido lógico tendo em conta que não se tratava propriamente de alguém da sua confiança. À luz da racionalidade política que o antigo presidente terá seguido, essa imagem de João Lourenço deve ter valido como um dos elementos que mais terá pesado na escolha. Seria muito incerta a afirmação de um sucessor que fosse visto como um “pau mandado” seu, pior ainda um familiar, como chegou a aventar-se. Os tempos de “vacas magras” que já se viviam e os que vinham aí obrigavam a uma escolha mais criteriosa.
Para a contradição entre a escolha de um homem em quem não deposita inteira confiança e a evolução na continuidade que espera venha a marcar a sua acção, JES parece ciente de que tem uma solução. Manter-se-á como líder do partido, o MPLA, artifício por si só capaz de condicionar o seu sucessor, na pessoa de João Lourenço. O partido já não é marxista-leninista mas graças a vantagens como a sua hegemonia política, controla o Estado e por via deste a própria sociedade. O aparelho do partido está também cheio de gente que lhe é afecta. E há-de aproveitar os seus últimos tempos como chefe de Estado para garantir a continuação de gente da sua confiança à frente de instituições chave do Estado.
Não estavam certas as expectativas de José Eduardo dos Santos. Será curta a vida dos homens de mão por ele deixados à frente de organismos do Estado ou nas empresas públicas. Os decretos presidenciais que lhes prolongavam os mandatos acabariam por ser derrogados por outros, do novo presidente, pondo simplesmente termo aos mesmos. O primeiro a ser “ruado” não podia ser mais simbólico: António Sumbula, PCA da Endiama, um homem especialmente ligado ao anterior presidente e respectiva família. Dali a nada será a vez da própria Isabel dos Santos a deixar o comando da Sonangol.
De caminho, começa a abrir brechas o próprio modelo de poder repartido engendrado por José Eduardo dos Santos. O poder e a influência de João Lourenço como chefe de Estado, mais a boa aura que continua a ser a sua na sociedade, haveriam de revelar-se eficazes como focos de pressão calculados para levar o seu antecessor a deixar a direcção do partido. Em Junho de 2018, manifestamente magoado e provavelmente arrependido da escolha que fez para lhe suceder como presidente da República, José Eduardo dos Santos renuncia à direcção do partido. Dali a menos de um ano deixará o país. Nunca mais voltou.
Na evolução na continuidade (ou a transição tranquila) que José Eduardo dos Santos terá esperado que viesse a ser a do seu consulado para o de João Lourenço, este terá simplesmente visto uma espécie de “colete de forças” que o impediria de se afirmar politicamente e consolidar o seu próprio poder. Ao contrário, José Eduardo dos Santos, não apenas o próprio mas acrescentando a ele a família e os seus protegidos, acabaria por manter intactos interesses e influências que no seu conjunto poderiam representar um centro de poder paralelo. João Lourenço fintou esse destino – foi o que fez.
Do júbilo às dúvidas
O factor que mais decisivamente contribuiu para que a vasta popularidade de João Lourenço passasse do alfa inicial para o ómega do presente foi o das dúvidas que foram proliferando na sociedade em relação à sinceridade/autenticidade das suas políticas de combate à corrupção. Aqueles que a justiça vai “chamando à pedra” são os filhos de José Eduardo dos Santos e antigos dignitários do partido e do Estado com ele conotados. Veio daí e do facto de terem sido “deixados de fora” (ou fingindo-se que estavam a contas com a justiça), muitos outros apparatchiks da constelação de corruptos, a ideia do carácter selectivo do combate à corrupção.
A ideia corrente de que a justiça angolana não é verdadeiramente independente do poder político (a Constituição reserva ao presidente a competência de escolher, nomear e dar posse a juízes dos tribunais superiores, por exemplo), cedo faz com que se comecem a instalar na sociedade certezas e/ou percepções desvalorizadoras do combate à corrupção de João Lourenço. Diz-se que o propósito que verdadeiramente o move é o de anular o poder económico da “família” (ente representado por familiares e apaniguados do seu antecessor), de modo a limitá-los como seus putativos adversários. Os “marimbondos”, como lhes chama, aos quais também associa eventuais intentos conspirativos.
Conheciam-nos como “a santíssima trindade” e passavam por ser “os maiores corruptos de Angola”: Manuel Vicente, Leopoldino do Nascimento “Dino” e Manuel Vieira Dias “Kopelipa”. Deixados em paz, é como se diz que estão todos – o primeiro mais que os outros. Em nome de alegadas conveniências políticas e de poder de João Lourenço, como também se diz. Higino Carneiro, esse, senhor de vasto património, também “vai fazendo a sua vida normal”. Os ímpetos iniciais de “o levar à justiça” foram fenecendo. Já Augusto Tomás, um “pobre” antigo ministro dos Transportes, (sem nome, nem família ou estatuto social) esse, aparentemente feito bode expiatório, foi mesmo parar à cadeia.
Era difícil que coisas assim, multiplicadas por muitas outras, não tivessem começado a gerar na sociedade dúvidas em relação à bondade dos propósitos de combate à corrupção de João Lourenço. A esse mal juntou-se outro. Aquilo que apesar de tudo foi a sua acção no plano do combate à corrupção e ao nepotismo (era preciso demonstrar que as suas promessas não haviam sido esquecidas), foi criando entre os dignitários do partido e do regime um clima de intranquilidade e agitação. Foi um ápice até o tomarem como adversário, vendo nele “maldades” como a paternidade da lei do repatriamento de capitais de 2018, à qual logo associaram uma ameaça ao seu património ou fortunas no estrangeiro.
Como sabem que lhes fica mal remeter apenas para isso a causa do seu descontentamento (e da sua oposição) a João Lourenço, alargam o seu queixume a outros motivos. Dizem, apontando pretensos casos concretos, que o novo Presidente também tem telhados de vidro em matéria de uso de recursos públicos em proveito próprio. Que se rodeia de “miúdos ambiciosos” e “veteranos incompetentes”, que vê como gente que melhor se presta a ser-lhe fiel. Que o funcionamento do Estado piorou. Ou que está nas mãos de Fernando Miala, o poderoso chefe do SINSE (o órgão da segurança de Estado), criatura malquista entre todos eles.
É a viver o dilema da combinação do esmorecimento do apoio popular com o crescimento da “frente” que contra ele aberta no partido e no regime, que se abatem sobre a cabeça de João Lourenço duas outras adversidades. A eleição de Adalberto Costa Júnior como novo líder da UNITA e a crise pandémica. Não tinha sido por acaso que o “aparelho de segurança” de Fernando Miala, o SINSE, fazendo “tandem” com o secretariado do partido e um órgão da própria presidência, o GAPI, tentou contrariar a eleição de Adalberto. Temia-se que as qualidades do homem viriam a fazer da UNITA uma ameaça à continuação do MPLA no poder ou à sua hegemonia. Foi o que se viu.
O “coronavírus”, esse, por efeito das drásticas restrições a que deu lugar, estendeu ainda mais o mar de descontentamento da população, em especial nas cidades. Desde logo por pôr a nu (agora um nu integral) um serviço público de saúde a funcionar preso em arames. Tão ou ainda mais grave do que isso, foram os malefícios sociais causados pelo abrandamento da actividade económica. O aumento do desemprego e a degradação dos salários a que isso deu lugar agravaram ainda mais as condições básicas de vida de uma população do antecedente já severamente atingida pela crise da queda do preço do petróleo declarada em 2014.
Havia uma maneira, clássica, de enfrentar a emergência que em 2014 pôs Angola perante a dura realidade de ter de passar a contar muito menos com um recurso, o petróleo, depois da independência convertido em base quase única sua economia – na verdade uma petro-economia. Era voltar a pôr de pé sectores da economia de que dependia a economia no tempo colonial. A agricultura, a indústria, as minas, as pescas, tudo sectores arrasados ao longo da guerra civil e continuadamente votados ao abandono mesmo depois do fim da mesma, em 2002. O deslumbramento causado na nomenklatura pelos biliões de dólares do petróleo parece não tê-la deixado ver que o destino de tanto dinheiro devia ter sido outro que não a corrupção.
Agora não há dinheiro e o investimento externo (know-how também) que era preciso atrair como condição imperativa para revitalizar esses outrora florescentes sectores da economia está longe de corresponder àquilo que se espera. A razão de ser disso é que o ambiente de negócios de Angola não é considerado suficientemente atractivo. A corrupção é o mal dos males mas de par com outros, como a burocracia e a limitada independência da justiça, todos reveladores de que as reformas de João Lourenço pecaram por falta de profundidade ou nem sequer foram tomadas. Num país com um vasto potencial mineiro, não há nenhuma major do sector!
Coisas para que os investidores costumam olhar como “fumos” de instabilidade, também devem estar a contribuir para a curva descendente em que o investimento em Angola entrou. A violenta repressão policial ocorrida no Cafunfo contra uma manifestação de jovens não voltou a repetir-se e a urbanidade da polícia face a manifestações de protesto em Luanda parece estar a fazer carreira. Mas o descontentamento da população, especialmente notório em Luanda, onde ninguém parece fazer-se rogado nas críticas a um regime aparentemente pouco disposto a fazer concessões, esse é impossível deixar de ver senão como um foco de instabilidade político-social.
Maus presságios
À pressão exercida sobre João Lourenço pela tormenta em que navega a nau de que em 2017 foi feito capitão, leva-o agora a seguir uma linha de apaziguamento com franjas do partido e do regime que tem por descontentes consigo próprio e com a sua “prestação”. Parece impelido pela ideia de que ou serena e reagrupa à sua volta o partido ou, o mais certo, é que a sua recandidatura ao cargo, em 2022, corra o risco de vir a ser preterida. Foi assim que se desdobrou em gestos de reaproximação ao seu antecessor e à “família Neto” ou que recuperou para a política activa figuras antes pouco estimáveis, como Fontes Pereira, Rui Falcão ou Bento Bento.
A mão que João Lourenço vai estendendo aos seus adversários internos parece também reflexo da conveniência de “unir o partido” no aceso combate político-eleitoral aberto contra o aguerrido líder da UNITA, tendo em vista o propósito de o enfraquecer e isolar. Os “profetas” do regime parecem acreditar que o clima de descontentamento existente no país acabará por se virar contra o MPLA se Adalberto o puder explorar tirando partido do trunfo de líderar um partido histórico e bem implantado na população, por essa razão também capaz de congregar à sua volta toda a oposição credível e a apresentar-se como elemento aglutinador da população descontente.
O encosto seguro que João Lourenço trata de encontrar no MPLA não é considerado um bom presságio. O conforto que parece querer fazer disso para lidar com a impopularidade a que passou a ser votado ou com o efeito “boomerang” provocado pela desaustinada campanha contra Adalberto, há-de ter um preço. O MPLA puro e duro em que se acolhe, diz-se que tem a corrupção e o imobilismo “na massa do sangue”. Teme-se, por isso, que o combate à corrupção e as reformas de João Lourenço acabem por ir entrando em exercícios findos. Ainda que pareça que não.
OBSERVADOR(Lisboa) -23.05.2021