Nem o treino militar dos fuzileiros de Portugal e outros Estados nem as “boots on the ground” das forças especiais da SADC poderão compensar a negligência sistémica do governo de Maputo em relação a esta região do país. Em vez da resolução do conflito, isso conduzirá à sua escalada militar, à custa da população civil.
Por Michael Hagedorn
A pilhagem maciça que terá sido realizada pelo exército moçambicano após a recaptura de Palma lança luz sobre a decadência moral e ética não só do exército, mas também do governo de Maputo.
Mais do que nunca, coloca-se a questão: porque centrar-se em treinos militares como solução para o conflito?
Em vez de prioritariamente assegurar condições dignas aos 700.000 refugiados internos, o governo moçambicano, com aliados bilaterais e multilaterais, está a privilegiar uma resposta militar como solução para o conflito em Cabo Delgado – apesar do fracasso que este tipo de intervenção tem tido na África Ocidental e noutros locais.
Nem o treino militar dos fuzileiros de Portugal e outros Estados nem as “boots on the ground” das forças especiais da SADC poderão compensar a negligência sistémica do governo de Maputo em relação a esta região do país. Em vez da resolução do conflito, isso conduzirá à sua escalada militar, à custa da população civil.
Os recentes relatos inauditos de que, após a recaptura de Palma, as forças de segurança moçambicanas saquearam totalmente a cidade abandonada, fazem lembrar cenas de soldadescas saqueadoras durante a Idade Média (ver Carta de Moçambique).
É elucidativo o comentário na mesma edição da CdM: “A pilhagem a Palma é uma consequência cruel do desleixo e do desgoverno que reina no Exército (no Estado e na Sociedade). Uma tropa sem moral, mergulhada na ladroagem. Não há pobreza que justifique esse comportamento. Como ganhar a guerra com este estado das coisas?”
E é preferível nem imaginar como este exército se comporta em relação à população civil que é suposto proteger.
715.000 refugiados internos e cerca de 2500 mortos foi até agora o resultado do conflito armado em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Quando estrangeiros que trabalhavam para o maior projecto de liquefacção de gás de África foram afectados, no ataque à cidade de Palma ocorrido no final de Março, o conflito chegou ao conhecimento do público internacional e aumentaram as vozes em favor de uma solução militar.
Contudo, o que continua a ser largamente ignorado é a responsabilidade pela causa indirecta do conflito: o governo de Maputo, liderado pela elite da Frelimo, que durante anos não actuou em Cabo Delgado por pura ganância e arrogância, alheio ao sofrimento da população e à realidade nesse canto remoto do país. Isso permitiu que a situação adquirisse as presentes dimensões, alimentada pelo desespero de uma juventude local radicalizada que se sente excluída, sem perspectivas de futuro e que enfrenta uma pobreza e desigualdade crescentes. Entretanto, os oligarcas da Frelimo dividem a riqueza da província entre si e as empresas mineiras e de gás.
Apesar de o assalto a Palma já ter sido previsto, os 800 soldados presentes na península de Afungi estavam a proteger o local de construção do projecto de gás, deixando os residentes de Palma indefesos contra os insurgentes, como bem mostra uma reprodução em vídeo lançada pelo New York Times.
O economista e presidente da câmara do partido de oposição MDM em Quelimane, Manuel Araújo, usou a este respeito palavras claras numa entrevista dada no canal STV: “Hoje vemos que o nosso Estado é de facto um Estado falhado que não pode garantir a soberania nacional, que não pode defender cidades e distritos... que não pode garantir direitos constitucionais, o direito à segurança, o direito à paz, e que não pode garantir condições humanas para aqueles que são vítimas, que fugiram ou que procuram melhores condições de vida. Por isso falhámos em toda a linha; falhámos na guerra física (...) e estamos a falhar na ajuda humanitária.”
Enquanto isso, a comunidade internacional continua a seguir a narrativa de Maputo de que a insurreição é uma intervenção terrorista estrangeira e a querer fornecer apoio militar, seja através de treino de curto prazo, apoio logístico ou presença no terreno, e desvaloriza, para agradar ao governo, as causas estruturais do conflito que não podem ser resolvidas militarmente.
São numerosos os exemplos da ineficácia de tais intervenções a nível mundial, acabando por instalar a guerra durante anos, em prejuízo da população local.
Só uma actuação ao nível dos verdadeiros motores do conflito, que dê aos jovens uma perspectiva de futuro minimamente aceitável, poderá levar à paz pretendida.
De momento, deveria ser dada prioridade aos esforços para proporcionar condições de vida dignas aos mais de 700.000 deslocados actuais.
O que teria de acontecer para evitar uma escalada militar?
- Dar prioridade à ajuda humanitária e de emergência
A sobrevivência imediata das pessoas deslocadas internamente deve ser assegurada, com um mínimo de cuidados de saúde e ensino para as crianças. Há, no entanto, que evitar a consolidação dos campos de refugiados nos distritos e províncias vizinhas na zona do conflito, bem como a instrumentalização da ajuda por parte do governo da Frelimo.
- Proteger a restante população nos distritos afectados por conflitos
Em vez de apenas atacar os insurgentes e assegurar os investimentos estrangeiros, forças de segurança moçambicanas devidamente preparadas deveriam concentrar-se na protecção da população e, para tal, aproveitar a experiência das milícias locais, que gozam da confiança da população. Isso permitiria também envolver os jovens na luta contra os insurgentes integrando-os nestas milícias.
- Negociar com os líderes provinciais locais e com aqueles que lucram
com o conflito
Há quem tire vantagens deste conflito e não tenha qualquer interesse em acabar com ele, pois isso significaria também o fim dos seus rendimentos na economia paralela, por exemplo, no comércio local de madeira, pedras preciosas, marfim e drogas. É difícil destrinçar de que lado estão estas elites locais, mas são conhecidos tanto nomes da Frelimo como de famílias influentes locais, em geral da etnia Maconde.
Estes actores têm de ser envolvidos em soluções a nível local, uma vez que podem frustrar todos os esforços para a paz.
- Tentar negociar com os insurgentes
Afirma-se repetidamente que a negociação com os insurgentes não é possível porque “não têm rosto” para o mundo exterior, não têm líderes. Porém, isso está em contradição com muitos relatos feitos por refugiados, segundo os quais a maioria dos insurgentes são conhecidos, são ex-membros das aldeias e mantêm contactos. O melhor exemplo é a actual ajuda humanitária para os refugiados no campo de Chitunda, onde os insurgentes não impedem os voluntários locais de operar em redor de Palma.
É, pois, necessário identificar mediadores que sejam reconhecidos e encontrem soluções locais aceitáveis para ambas as partes.
É necessário um programa de amnistia credível para os insurgentes que não tenham cometido crimes graves. Permitir aos amnistiados que depois regressassem às suas comunidades de origem sem serem discriminados seria um forte incentivo para abandonarem a guerra
- Impedir novos recrutamentos
Devem ser oferecidas alternativas a curto prazo aos jovens que vivem na periferia do conflito e fora dela. Por exemplo, através de programas de “cash for work”, de reabilitação de infra-estruturas sociais, conservação do solo e da água, controlo da erosão, reflorestação, construção de estradas, etc. As ONG locais, socioculturalmente ancoradas, deveriam ter aqui um papel relevante.
Os seus membros são conhecidos, gozam da confiança da população e existe controlo social.
- Garantir uma amnistia credível
É necessário um programa de amnistia credível para os insurgentes que não tenham cometido crimes graves. Mas antes de regressarem às suas comunidades de origem, deveriam passar por campos de treino com a possibilidade de realizarem actividades para jovens, incluindo desporto, Internet e actividades cívicas, coordenadas por líderes informais locais (formados por peritos).
Permitir aos amnistiados que depois regressassem às suas comunidades de origem sem serem discriminados seria um forte incentivo para abandonarem a guerra. Tal programa de amnistia teria de ser controlado de forma independente.
- Fechar a fronteira com a Tanzânia
A polícia e as forças militares teriam de ser mobilizadas para evitar a infiltração de novos insurgentes, agitadores, pregadores, bem como o fornecimento de armas, munições e outros equipamentos. A pressão internacional sobre os governos de Moçambique e da Tanzânia seria essencial para isso.
Portugal e a UE deveriam exigir ao governo de Maputo uma explicação imediata e transparente do que sucedeu em Palma e a condenação dos responsáveis. Até que essa explicação seja prestada, Portugal deve suspender as actividades de formação militar e a UE não deve continuar a preparar a prevista missão militar
Porém, nem mesmo a implementação destas medidas será bem-sucedida se não houver por parte do governo de Maputo vontade política para, efectivamente, melhorar a situação da população de Cabo Delgado. Vários estudos internacionais, como o da Chatham House, salientam que enquanto o paradigma prevalecente do “counter-terrorism” se concentrar no conceito do jihad global e não no do Estado corrupto e repressivo, que não presta serviços sociais e garante a segurança dos seus cidadãos, o conflito arrastar-se-á e conduzirá a mais violência e sofrimento da população afectada.
A tarefa de todos os parceiros bilaterais e multilaterais de Moçambique é pressionar o governo de Maputo nesta matéria, deixando de subscrever acriticamente a sua narrativa do terrorismo internacional.
Primeiramente, contudo, Portugal e a UE deveriam exigir ao governo de Maputo uma explicação imediata e transparente do que sucedeu em Palma e a condenação dos responsáveis. Até que essa explicação seja prestada, Portugal deve suspender as actividades de formação militar e a UE não deve continuar a preparar a prevista missão militar.