Por salvador raimundo
Embalado pelas festividades da Independência Nacional, o presidente Filipe Nyusi, finalmente, abriu o véu para declarar uma intervenção militar estrangeira, na guerra de Cabo Delgado. Nyusi fala do “apoio necessário” dos estados-membros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) e dos países “amigos e irmãos”, porém sem revelar a identidade dos mesmos.
Ainda assim, motivo suficiente para o chefe de estado reeditar a nega segundo a qual, o Governo moçambicano declinou os apoios externos para o combate ao terrorismo. Não é a primeira vez que no caso, o presidente Nyusi joga na defensiva.
Porém, na semana que antecedeu a cimeira da passada quarta-feira (23), em Maputo, o ISS África, numa espécie de antevisão ao encontro dos líderes da região, sugeriu recurso a diplomacia para convencer o Governo de Moçambique a apostar mais nos esforços regionais em detrimento de iniciativas levadas a cabo pela União Europeia, especificamente França como ponta de lança.
Fosse como fosse, o Governo moçambicano deixou que o órgão da Política, Defesa e Segurança da SADC cumprisse todos os trâmites até que semana passada os líderes da região deram aval para recurso a Força de Intervenção (Prontidão).
Perito em direito internacional, Andre Thomashausen chama a atenção para o facto de as autoridades moçambicanas não terem apresentado pedido formal à SADC, para que a Força de Prontidão entre em acção.
Thomashausen explica que é de regra este tipo de procedimento, até porque sustentado pelos ditames inclusive das Nações Unidas.
Certo é que Nyusi transpira animosidade, de tal modo que manda recadinhos aos extremistas, nos próximos tempos a terem de experimentar traumas e agonias, sempre com as forças de defesa e segurança moçambicanas na linha da frente, em nome da salvaguarda da soberania.
Samia (Tanzânia) irritada
Samia Hassan Suluhu abandonou a cimeira quando ainda decorria à porta fechada e já não esteve na foto de família dos chefes de estado e de governo que fizeram parte do evento extraordinário, quarta-feira (23).
Nem a Tanzânia, muito menos a organização trouxe à superfície o que terá precipitado a saída da presidente tanzaniana. Sabe-se, isso sim, que desde o primeiro momento, a Tanzânia é contrária à musculatura, por entender estar-se diante de um problema de foro interno, de Moçambique, ainda com sinais de uma solução de reconciliação, desde que recorrendo ao diálogo.
Liberata Mulamula, a ministra tanzaniana das Relações Exteriores, tem sido o principal rosto da mensagem de que o seu país se oferece a intermediar as negociações entre o Governo moçambicano e os terroristas que se encontram em Cabo Delgado, desde que a coberto da SADC.
No mesmo ano que a crise de segurança rebentou, em Mocímboa da Praia, outubro de 2017, Afonso Dhlakama comentou que se tratava de um problema interno da Frelimo. Voltando à meada, Suluhu e Mulamula nunca viram aceite a sua proposta no seio da SADC, aparecendo, a Tanzânia, como único país contrário ao recurso a uma intervenção militar, com o sério risco de serem mortos inocentes, dado que o método escolhido não vai resolver o problema.
Terá sido nessa base que a comitiva tanzaniana, liderada pela presidente Samia Hassan Suluhu virou as costas à cimeira, irritada com o que estava a ser proposto.
Andre Thomashausen corre em defesa da Tanzânia que, na sua opinião, terá lido com a necessária atenção o Artigo 11 (3) d do protocolo da SADC sobre Cooperação nas Áreas da Política, Defesa e Segurança (Res no 7/2002, de 26 de Fev de 2002): “A Cimeira recorrerá à acção coerciva unicamente como matéria de última instância e em conformidade com o Artigo 53 da Carta das Nações Unidas, e unicamente com a permissão do Conseho de Segurança das Na[1]ções Unidas”. Thomashausen questiona quando é que a SADC recorreu à Carta das Nações Unidas para fazer valer os seus interesses. Exército ruandês A referência aos países “amigos e irmãos” pode ser entendida como sendo o exército do Ruanda, com o apadrinhamento de Emmanuel Macron, presidente da França que já esteve reunido a sós com Filipe Nyusi, em Paris, e com Paul Kagamé, na capital francesa e em Kigali.
Curiosamente, estas movimentações começam depois de 300 soldados do Ruanda tomarem conhecimento do término da missão de manutenção da paz na República Centro-Africana, onde ombreavam com outros 300 militares franceses e de outros tantos de Portugal e da Rússia.
Por essas alturas, caricato, Emmanuel Macron anunciou a interrupção do apoio militar e económico à República Centro-Africana, incluíndo uma dotação orçamental de mais de 10 milhões de dólares norte-americanos/ano, sob o argumento de que as autoridades do país não cumpriram a promessa de bloquear vexames - via redes sociais - contra o presidente francês, numa altura que mais precisa de apoio, em vista as eleições na França.
Sem colocação, o exército ruandês e a coberto do presidente da França, acaba de ganhar vantagem nas escolhas moçambicanas, a troco do exército sul-africano, que nunca grangeou nas preferências do executivo de Maputo.
Andre Thomashausen, a um canal televisivo moçambicano, aparece a dizer que os ruandeses estão a caminho de Cabo Delgado, para onde deverão desembarcar em finais de julho para que, em agosto, dêem início às operações militares contra os terroristas.
A agência noticiosa norte-americana, Bloomberg, interpelou a secretária executiva da SADC sobre o assunto. Stergomena Tax respondeu com a garantia de que se estava a trabalhar com vista à materialização das decisões saídas da cimeira de Maputo, ou seja: “nós vamos para a guerra”.
Para além do exército ruandês, nos corredores fala-se da entrada em cena dos soldados zimbabweanos, em cujo namoro ganhou forma com a visita que Filipe Nyusi efectuou a Harare, na semana que antecedeu a cimeira da quarta-feira (23), em Maputo.
Há muito que Moçambique tem “preferência” pelas performances dos zimbabweanos, cujo exército é de uma preciosa folha de prestação nomeadamente na República Democrática do Congo, a coberto dos ‘capacetes azuis’.
Em sentido contrário, o exército sul-africano que nunca foi das preferências dos oficiais militares moçambicanos, essencialmente pelo aparente fraco poderio combativo, comparativamente ao do vizinho Zimbabwe.
Paris-Kigali-Pretória
Fonte privilegiada conta ao ET os pecados do exército ruandês no solo da República Centro-Africana para ter de abandonar (expulso) a missão das Nações Unidas. Para além de supostamente brutalizar as populações, os soldados ruandeses, consta, faziam saques dos recursos minerais e teme-se que em Cabo Delgado tais práticas sejam levadas a cabo.
Na República Centro-Africana, estes soldados eram tidos como ‘Les Affreux’, os terríveis aos olhos das populações.
Quando o problema foi despoletado, os ruandeses atiraram culpas aos russos do Grupo Wagner, que também anda por lá que, em resposta, sugeriram às autoridades da República Centro-Africana no sentido de cortar as relações com o exército do Ruanda.
Pelo meio, a tal intensificação das relações entre Emmanuel Macron e Paul Kagamé. A bomba viria a rebentar quando os serviços aduaneiros da República Centro-Africana detectaram, no aeroporto de Bangui, malas recheadas de ouro prontas para serem embarcadas com destino a França, a coberto dos militares franceses. Não tardou e o episódio se tornou viral nas redes sociais, para a ira de Macron.
Por detrás das engenhosas iniciativas Paris-Kigali, estão os inevitáveis interesses económicos. As nossas fontes revelam que a transferência dos soldados ruandeses da RC-Africana para Cabo Delgado visa precisamente sustentar interesses económicos ruandeses e franceses. Enquanto isso, a França e a África do Sul, para completar o triângulo, se propõem a reactivar as patrulhas marítimas e aéreas ao longo do canal de Moçambique, visando interceptar a pirataria, conhecida a importância que o canal assume nas rotas internacionais, 30% das quais têm esse corredor como travessia.
Outra fonte assegura que a SADC estará presente no combate ao terrorismo em Cabo Delgado, mas não nas dimensões que têm sido propaladas, porque empurrada para trás pelo interesse económico da dupla França-Ruanda.
Dados não confirmados, apontam para uma injecção de 120 milhões de dólares norte-americanos o custo das operações militares em Cabo Delgado, dinheiro a ser injectado pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
Província militarizada
Nos próximos tempos, Cabo Delgado vai receber militares ruandeses e os da SADC, juntando-se as forças de defesa e segurança de Moçambique. Antes desta previsão, os analistas já denunciavam uma província militarizada, situação que promete fazer rebentar Cabo Delgado pelas costuras, nomeadamente em Pemba, por ser na capital onde se encontra parte dos deslocados internos e dezenas de agentes governamentais.
A Human Rights Watch (HRW) acaba de reportar “vários abusos” dos direitos humanos, com registo de crimes de guerra, como decapitações (incluíndo crianças), mulheres sequestradas para escravidão e abuso sexual, destruição de escolas e hospitais e casas incendiadas com pessoas dentro, éis o relato de algumas das centenas de milhares deslocados por causa da violência armada.
Atravez do webinar organizado pelo Mail & Guardian e International Crisis Group (IC[1]G), a 17 de junho, Zenaida Machado, investigadora sénior do HRW, frisa o seguinte: “falei com mulheres que não conseguem dormir porque ainda se lembram do momento em que seus filhos foram tirados delas ou porque ainda estão separadas e preocupadas onde estão”.
A HRW diz que 75% das pessoas deslocadas são mulheres e crianças. Zenaida Machado é citada a dizer ainda que o Governo desempenha o papel mais importante na prevenção de uma nova frente jihadista, e enumera as necessidades básicas de que as pessoas mais precisam, designadamente, comida, abrigo, água e ajuda para encontrar as suas famílias.
São precisos centros onde estes serviços devem ser desenvolvidos, porque questões no role das ajudas essenciais às pessoas deslocadas de Cabo Delgado.
Zenaida Machado sentencia: “deve ser da responsabilidade do Estado”. Desde o início do conflito que algumas crianças “não frequentam a escola, há quase quatro anos” porque, em alguns casos, as escolas foram destruídas ou porque não é seguro. Pelas contas do Governo, pelo menos 45 escolas foram destruídas em toda a província de Cabo Delgado.
A investigadora da HRW não poupa críticas ao Governo, pelas condições não favoráveis dos centros de reassentamento criadas e as pessoas já pensam em regressar para casa em detrimento de serem realocadas.
Dino Mahtani, vice-director do IGC África, na mesma iniciativa webinar co-organizada pelo Mail & Guardian, lembra que os sinais da insurgência remotam a 2007 (o presidente Filipe Nyusi fala em 2012).
Mahtani: “o que você tinha, naquela época, eram meninos jovens sem direitos nas comunidades locais, ao longo da costa”. Sofrendo por causa do subdesenvolvimento, os jovens em Cabo Delgado também têm se sentido frustrado “com as elites políticas e empresariais há mais de uma década”, sublinha Dino Mahtani, acrescentando que ao longo desse período, os jovens de Cabo Delgado foram sem ‘alimentados’ com panfletos jihadistas islâmicos da África Ocidental, publicados proeminentes radicais.
Em 2017, ainda de acordo com Dino Mahtani, estes jovens adquiriram armas, sem que tal constituísse surpresa para o orador do webinar, da[1]do que a zona costeira de Cabo Delgado estabeleceu rotas de e para a Somália e o Golfo de Aden até ao Iémen, transportando artigos ilícitos, incluíndo armas.
A insurgência é constituída essencialmente por jovens moçambicanos que veem nela uma oportunidade de ganhar dinheiro. Dino Mahtani afirma que o relatório do ICG centra-se no modo como o Governo moçambicano pode fortalecer o diálogo os insurgentes e faz referência às motivações para que os jovens integrem a insurgência, ainda como atenuar tensões da comunidade.
Mahtani nega que os grupos insurgentes estejam a controlar os territórios que reivindicam, por se tratar de um grupo armado predador em acampamentos remotos e sempre que se cruzam com a população desconfiam, por entenderem estarem diante de uma ameaça ou colaboradores do Estado e não hesitam em matar.
Alguns deslocados sentem que a sua tribo ou religião ditam o comportamento das forças governamentais e dos insurgentes, levando a práticas discriminatórias.
“O resgate e a evacuação é um processo corrompido pelas forças de defesa e segurança e por oportunistas que exigem o pagamento de passagens seguras para regiões vizinhas e passeios de barco”, anota Zeinada Machado.
EXPRESSO – 28.06.2021