Por Elisio Macamo
Ultimamente sinto-me atraído pela história. A conferência de Berlim de 1884-85 tem sido uma referência constante nessa atracção. O que me cria confusão na cabeça é que quanto mais leio sobre isso, mais me convenço de que a colonização de África em si não parece ter sido o essencial da agenda dessa conferência. É verdade que muitos dos participantes, principalmente quatro deles (Inglaterra, França, Portugal e Bélgica), esperavam alguns ganhos da colonização, mas a Inglaterra e a França estavam muito mais preocupadas em impedir que a outra ganhasse maior protagonismo, o que fez com que Portugal e a Bélgica beneficiassem.
Mas a outra coisa que me dá dores de cabeça é o papel dos africanos em tudo isto. Como alivia partilhar as dores com outras pessoas, é disso mesmo que quero falar. Muitas vezes é difícil responder perguntas que são feitas usando conceitos que fazem sentido hoje, mas no passado não tinham o mesmo significado. Por exemplo, se a gente perguntar porque os africanos não se defenderam melhor já que estavam na sua própria terra, eram em maior número e muitas vezes estavam a lidar com empresas privadas, não directamente com os governos britânico, francês, português ou belga, vai ser difícil ter uma resposta satisfatória porque o conceito “africano” não tem hoje o mesmo sentido que teve naquela altura. As pessoas não se viam necessariamente como “africanas”, muito menos como “mozes”, “angolanas”, etc.
Sabemos como foi no Sul de Moçambique com as rivalidades entre o Império de Gaza, os Copi, os xangan, os reinos da zona de Maputo, etc. Não havia nenhum conceito de “Moz” ao qual eles podiam apelar como fonte de coesão contra os invasores estrangeiros. O grosso das tropas portuguesas que marcharam contra Ngungunyan era composto por “africanos” (de Angola), “mozes” xangan, ronga e por aí fora. Não fizeram isso por falta de patriotismo porque o sentido desse termo hoje é diferente. Fizeram no seu próprio interesse de tal modo que até podemos dizer, ainda que custe muito reconhecer isso, que o colonialismo foi possível também porque algumas pessoas de cá beneficiaram, ou esperavam beneficiar. Agora me lembro que René Pelissier, o historiador francês, disse algo assim há décadas.
É claro que não tinham consciência de que iam beneficiar do “colonialismo” porque o que isso foi viu-se mais tarde, curiosamente até de forma retrospectiva. O problema da história é esse. Quando ela acontece, não se apresenta como ela será quando realmente for história. Ela sempre se apresenta como o que qualquer pessoa normal faria em circunstâncias normais. As futuras gerações é que depois dão outros significados ao que aconteceu. E fazem isso usando conceitos que só fazem sentido na sua época, não na época dos acontecimentos relatados. Bom, não sou historiador para falar com certeza, mas esta é a minha impressão das coisas. Se os nossos antepassados tivessem sabido que estavam no limiar do colonialismo, talvez tivessem agido doutra maneira, quem sabe? Ou talvez não!
A privatização de Cabo Delgado em resposta à violência que ameaça a soberania que nos fez fazer aquele juramento de nunca permitir que um tirano nos escravize é algo inocente e que é perfeitamente racional. As nossas FDS não têm capacidade para resolver o assunto. Já temos mais de 800.000 deslocados, mais de 3000 mortos, vilas ocupadas pelos insurgentes, empreendimentos económicos parados, etc. Porque não aceitar a ajuda daqueles que nos garantem alívio nesta hora difícil? Porque não proteger pelo menos os empreendimentos económicos? O que vier lá mais para a frente, a gente vê nessa altura!.
Vários cenários são possíveis e raramente aquele que temos na cabeça é o que vai vingar. O que temos na cabeça é o cenário em que os insurgentes são completamente derrotados (já há jornais que escrevem que os ruandeses abateram 30 insurgentes; estrangeiros abateram 30 moçambicanos e os jornais festejam isso...) e tudo volta à normalidade. O cenário mais provável é que os insurgentes desistam de controlar vilas, subdividam-se em unidades pequenas de 3-5 pessoas, e se espalhem por todo o norte do País criando insegurança, cobrando impostos de protecção, semeando o terror, etc. A Renamo fez isso em reacção à presença das tropas zimbabweanas e tanzanianas.
As nossas FDS, constantemente humilhadas pelo seu Comandante em Chefe que não as apetrecha devidamente, não as consulta, aparentemente, para saber do que precisam para fazerem melhor o seu trabalho de garantir a segurança, etc., vão se perguntar porque devem correr atrás de emboscadas no mato quando não têm nem metade do que os ruandeses têm.
Os serviços de inteligência vão guardar a informação para si por medo de que más notícias sejam interpretadas como conluio com o inimigo ou falta de patriotismo. As populações locais hão-de ver os seus filhos a serem mortos (“abatidos” na linguagem oficial), vão lançar todas as culpas contra os invasores “Lexi-Lexi” (portanto, os do Sul), alguns pais verão as suas fontes de rendimento secas já que se tornará difícil que os filhos enviem parte do dinheiro que ganham por participar em acções militares contra as FDS.
Um dia, os franceses e ruandeses podem se perguntar se faz sentido o que estão a fazer e se não seria mais prudente lidar directamente com as populações locais, mesmo se isso implicar criar um novo país lá. Afinal de contas, eles não estão lá pelos moçambicanos. Estão lá por causa dos seus interesses económicos. Foi assim no norte do Mali também. Tenho um ex-colega e amigo alemão que é grande pesquisador daquela região. Conhece muitos dos líderes dos Tuareg com quem mantém contacto. A presença francesa criou um espaço ideal para a normalização da ilegalidade. Jovens Tuareg ganhavam a vida fazendo a travessia do Sahara num Land Cruiser cheio de armas e drogas. Se voltassem vivos, eram USD10.000 e podiam ficar com a viatura.
De novo, o colonialismo não foi um projecto. Aconteceu. Aqueles enclaves inocentes na costa (em Lourenço Marques, em Luanda, etc.) não eram postos avançados de nenhum projecto colonial. Mas quando o horizonte chegou mais perto e as pessoas viram que era possível mais, tornaram-se numa retaguarda segura para a “ocupação efectiva”. No Congo, o Rei Leopoldo II tinha feito vários acordos com vários “reinados”, alguns dos quais em troca da promessa de oferta de tecido uma vez por mês. Deve ter sido muito para quem assinou, do lado africano, o tal contracto.
Não ter domínio da história, ou talvez melhor ainda, não ter consciência histórica é exactamente isto. A gente pensa que a história se repete, o que não é verdade. O único que se repete é a estupidez porque ela está à espera de detalhes quando o movimento histórico respeita padrões. A melhor protecção que existe contra a falta de domínio da história é nunca privatizar um assunto nacional. No século XIX não havia Moçambique, por isso os chefes de então até estão desculpados. Hoje Moçambique existe e encontra-se formalmente de cada vez que a Assembleia da República se reúne. Quando os historiadores do nosso presente um dia escreverem a história vão ter na “privatização de Cabo Delgado” um momento importante de seja qual for que vai ser a nossa relação com os outros.
Enquanto isso, aqueles que podem fazer a diferença aguardam pacientemente pelo fim do mandato porque fica mal dizer à pessoa que por inerência do cargo é a mais inteligente, perspicaz, estratega e patriota que Moz tem que ela precisa de fazer melhor e que tem de respeitar o povo comunicando com ele. Usam a paciência para evitarem exercer a sua cidadania.
#ClubeMoz