Por João Feijó
Três anos e nove meses após o início dos primeiros ataques em Cabo Delgado, depois de se consumar a ocupação de vastas áreas, de mais 4300 mortos reportados e 800.000 deslocados, depois de o país tomar conhecimento da entrada de milhares de militares estrangeiros a partir da imprensa estrangeira, o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, realizou um longo comunicado à Nação. Foi um discurso lido a partir de teleponto e sem direito a perguntas.
O Presidente da República realizou uma longa descrição do fenómeno em causa, desde a penetração de grupos fundamentalistas religiosos em vários distritos de Cabo Delgado, respectivas práticas, até ao início e alastramento do conflito armado. Abordou a destruição, assassinatos e raptos provocados pelo grupo insurgente e respectiva resposta governamental. Numa clara tentativa de moralização nacional, o discurso elogiou o desempenho das Forças de Defesa e Segurança, capaz de repelir e suster os ataques do grupo terrorista, reconhecendo dificuldades.
Alguns aspectos fulcrais não foram devidamente abordados, entre os quais:
- Não explicou, e compreende-se que nem poderia explicar, o que falhou da parte dos serviços de inteligência de Moçambique, quer durante o crescimento e consolidação do grupo radical, quer nas vésperas do ataque a Palma, epicentro de um dos maiores projectos de investimento no continente africano;
- Não abordou a complexidade do problema, nomeadamente a capacidade de mobilização e capitalização, por parte dos grupos violentos, do descontentamento local em relação ao Estado. Inúmeros relatórios de pesquisa vêm apresentando evidências de fenómenos de exclusão social num cenário de penetração agressiva do capital, onde situações de pobreza extrema coexistem com uma emergente sociedade de consumo. Estão amplamente documentados fenómenos de interrupção violenta de redes ilegais de exploração de pedras preciosas, de redes de tráfico internacional, de aumento da pressão sobre terras e limitação no acesso a recursos naturais, sentimentos de ameaça e de desprotecção perante a chegada massiva de quadros de fora da região, ocupando os melhores postos de trabalho em detrimento dos locais, aumento de assimetrias sociais e frustração de elevadas expectativas iniciais, abusos e oportunismo de agentes do Estado, dificuldades de acesso à justiça e ausência de espaços de participação;
- Não questiona um modelo de desenvolvimento extractivista e extrovertido, com poucas relações com o empresário local e pouco criador de emprego, em contextos geográficos marcados por elevadas taxas de analfabetismo e ausência de escolas de formação técnico-profissional, gerador de uma economia de enclave e de assimetrias sociais;
- Insistiu no desconhecimento do rosto dos cabecilhas, ou das suas reivindicações, quando os seus nomes, percursos biográficos e motivações são conhecidos pelas populações locais, estão identificados em trabalhos jornalísticos e relatórios de pesquisa;
- Foi omisso em relação à opção pelo recurso a tropas militares estrangeiras sem prévia apresentação à Assembleia da República, órgão representativo de todos os moçambicanos, assim como o motivo de mudança de estratégia de “não queremos botas estrangeiras”, para a solução de “salada”, em termos de intervenção conjunta no terreno. A imprensa vem abordando o forte passivo das forças militares e de segurança do Ruanda, assim como as suas atitudes de repressão e eliminação de opositores, edificando-se um regime fascizante, pelo que esta opção é geradora de preocupações.
- Nada referiu em relação à contratação de empresas mercenárias, às notícias que circularam em relatórios internacionais sobre a sua actuação, avaliando os custos de operacionalização e resultados;
- Foi omisso em relação às inúmeras notícias e relatórios que vêm a público de desmandos provocados pelas Forças de Defesa e Segurança, perdendo uma oportunidade de reconhecer erros e abusos de direitos humanos, de informar sobre a instauração de investigações internas e procedimentos disciplinares, demarcando o Estado desses comportamentos e solidarizando-se com as vítimas. O custo político imediato que poderia advir, no curto prazo, desse reconhecimento, teria um impacto positivo na promoção da disciplina interna dentro das FDS, da melhoria da imagem junto das populações e na confiança e colaboração dos populares, reduzindo a margem de recrutamento para grupos violentos;
- Apresentou justificações não convincentes relacionadas com ausência de contrapartidas económicas pelo envolvimento de milhares de militares estrangeiros, ignorando notícias que vêm a público de imputação das despesas militares aos custos de investimento da Total;
- Foi omisso em relação ao desenvolvimento de acções de contra-insurgência, particularmente relevantes num contexto de intensificação de acções de contra-terrorismo. Pela experiência de outras latitudes, sabe-se que os resultados militares são questionáveis, quando não acompanhados de reformas profundas em termos político-económicos, sociais e institucionais.
- Não reconheceu a ampla solidariedade da sociedade, em particular das populações de Cabo Delgado e de organizações da sociedade civil, sobretudo de agências internacionais, ao nível da assistência humanitária às populações, complementando ou até substituindo-se ao Estado, perdendo uma oportunidade de valorizar publicamente o comportamento excepcional de muitas famílias moçambicanas, também elas afectadas pela crise;
- Nada disse em relação a um dos problemas mais sensíveis na região, relacionado com a garantia de regresso das populações e segurança de acesso à terra nos locais de origem. A omissão destes assuntos, não permite reduzir a angústia e a ansiedade das populações locais, fazendo germinar sentimentos de injustiça complicados de gerir no presente e no futuro;
- Não esteve aberto a perguntas, impossibilitando a colocação de questões, que pudessem alargar o ângulo de análise e de compreensão do problema, esclarecendo as dúvidas das populações;
Esta primeira intervenção do Presidente da República foi benéfica e sugere-se que seja continuada e regular, com direito a perguntas e respostas por parte de jornalistas, oriundos de organizações públicas e privadas. Importa quebrar o pressuposto do secretismo de Estado em situações por demais conhecidas pela sociedade, na era das novas tecnologias de informação.
Para complexos problemas importa multiplicar mecanismos de reflexão. Em vez de longos monólogos, sugere-se a constituição de fóruns e debates alargados, envolvendo as várias forças vivas da sociedade, nomeadamente com representantes dos camponeses (a maior fatia populacional do país), de transportadores informais, de mineradores artesanais, associações de comerciantes, de organizações religiosas, associações empresariais e sindicais, associações jornalísticas e organizações de pesquisa, entre outros. As diferentes forças sociais poderão contribuir com diferentes sensibilidades, úteis para compreender o problema em questão, para complementar acções militares, e que não estão a merecer a devida atenção.
As questões levantadas neste texto resultam do conhecimento das realidades através de pesquisas realizadas pelo Observatório do Meio Rural, assim como de debates organizados em parceria com outras organizações públicas, religiosas e da sociedade civil, moçambicanas e estrangeiras.
27.07.2021