Agradecemos o seu email/carta, pois dá-nos uma oportunidade para dialogar sobre as questões que denunciamos no comunicado e vários outros assuntos levantados por si. Agradecemos também que o tenha tornado público, porque permite que o debate se estenda a mais interessados.
Antes de mais importa salientar que o plantio de monoculturas em larga escala tem inúmeros e graves impactos negativos no ambiente, incluindo o consumo de elevadas quantidades de água, portanto se o Governo continuar a promover o estabelecimento de plantações de monocultura em larga escala sob o falso pretexto de reflorestamento, com certeza acesso a água para “lavar o rabo” será a menor das nossas preocupações pois não teremos água para produzir alimentos, nem tão pouco para beber. Os impactos negativos das plantações de monocultura são sobejamente conhecidos, esta alteração agressiva da vegetação nativa no actual contexto de mudanças climáticas vem exacerbar os já previstos impactos das mesmas. Aliás, podemos ver inúmeros exemplos a nível global desta transformação da paisagem natural, incluindo em Portugal com as plantações da própria Navigator company da qual a Portucel faz parte, basta lembrar os tristes episódios anuais de queimadas descontroladas e o facto de não serem lá permitidos alargar as suas áreas, razão pela qual se estabeleceram aqui.
Acreditamos que estamos a viver tempos de múltiplas crises, e muitos dos recursos que hoje temos, talvez amanhã não existam mais ou estejam completamente mercantilizados e inacessíveis para a maioria. Infelizmente, muitas das chamadas soluções para a crise climática, ou da biodiversidade, ou da alimentação, entre outras, são soluções falsas que além de não contribuírem para resolver o problema, muitas vezes contribuem para agravá-los ainda mais ou para distrair a opinião pública de forma a parecer que se está “a fazer algo a respeito” - como por exemplo o plantio de monoculturas de árvores para mitigar a crise climática, também promovido pelo nosso governo na sua estratégia de reflorestamento, apesar da contestação de organizações da sociedade civil. Afinal, o que pode haver de errado com plantar árvores?
Quanto ao assunto específico da avaliacao do impacto ambiental (AIA), concordamos plenamente consigo. Aliás, se acompanhasse minimamente o trabalho da JA, saberia que sempre criticamos a leviandade com que são levados a cabo os processo de AIA e todos os processos corrompidos relacionados com os mega-projectos que abundam no nosso país. Desde 2011 que nos recusamos a tomar parte nestes processos de AIA, e sempre que convidados, respondemos a informar que não aceitamos fazer parte de processos de “faz de conta” que apenas procuram a nossa presença para validar as suas conclusões já previamente definidas. Já escrevemos muito sobre este assunto, e produzimos um estudo intitulado “Só para inglês ver” que foi apresentado ao público em 2018, e brevemente será lançada uma actualização do mesmo.
Apesar das inúmeras denúncias sobre a forma como estes processos estavam e continuam a ser levados a cabo, nada mudou, o que culminou com a nossa decisão de afastamento dos mesmos, particularmente após dois processos bastante problemáticos.
O primeiro foi a AIA para o projecto de exploração do gás na bacia do Rovuma. Desde o início apercebemo-nos do potencial elevado nível de impactos, ambientais e sociais e interferência que esse projecto poderia provocar, e todas as nossas preocupações foram completamente ignoradas. Na altura fizemos vários comentários, inclusive uma breve análise das falhas do processo enquanto a AIA decorria, na esperança que este fosse melhor conduzido. Quem sabe, se se tivesse feito um trabalho honesto e íntegro, e cientificamente válido, com exaustivas análises sociais e ambientais, teriam sido identificados os mesmos riscos e ameaças que nós identificámos. Quem sabe, se isto tivesse acontecido, não estaríamos hoje a viver mais uma maldição dos recursos e a passar por toda a destruição e desgraça que hoje se vive em Cabo Delgado.
O último processo de AIA em que participámos foi o de Mphanda Nkuwa, aprovado em 2011 sem que tivessem sido elaborados estudos ambientais cientificamente válidos e imparciais. Após 2 anos de estudos, as nossas questões e preocupações permaneceram sem resposta, e a Impacto decidiu ignorar as recomendações da JA e de muitos outros académicos e representantes da sociedade civil, apresentando um EIA com a conclusão ridícula de que “… o projecto da HMK é ambientalmente viável, sendo os benefícios que lhe estão associados, maiores que os prejuízos causados, se devidamente minimizados.” Apesar dos nossos inúmeros apelos, comentários e análises submetidas a vários níveis, incluindo o Ministério da Terra e Ambiente na altura MICOA, nada mudou o rumo do projecto.
Independentemente das inúmeras e graves irregularidades nos processos de AIA e de atribuição de terra para grandes projectos de investimento, incluindo as que se referiu no seu texto, a Portucel Moçambique não é de forma alguma isenta de responsabilidade, pelo contrário fez uso destas para assegurar a aprovação do seu projecto, mesmo perante grande contestação e resistência de várias organizações da sociedade civil. Pois foi exactamente a Impacto que a empresa decidiu contratar para assegurar que o seu projecto fosse aprovado. No entanto, o processo de AIA é apenas um dos aspectos a referir, pois o próprio processo de atribuição de terra à Portucel Moçambique é bastante problemático, razão pela qual persistem até hoje conflitos com as comunidades locais afectadas pelas suas plantações, e bastante resistência com outras tantas em zonas onde a Portucel não conseguiu entrar até hoje. Não temos qualquer elemento que fundamente a sua alegação de que a Portucel decidiu parar com o plantio, pelo contrário, temos vários elementos que nos sugerem que o plantio abrandou devido à resistência encontrada nas comunidades, pois já tiveram oportunidade de avaliar os impactos da Portucel em comunidades vizinhas e já verificaram que pouco ou nada do que foi prometido durante as consultas comunitárias foi cumprido. A JA! acompanha este processo desde o início e tem denunciado publicamente a actuação da Portucel Moçambique a vários níveis. O seu texto reflecte desconhecimento sobre o nosso trabalho, portanto convidamo-lo a analisar com atenção os inúmeros artigos, comunicados de imprensa e estudo sobre a questão.
As terras atribuídas à Portucel estavam já em larga medida ocupadas por comunidades locais, utilizadas essencialmente para a produção de alimentos, e a autorização de DUATs provisórios foi concedida à Portucel antes mesmo de concluído o processo de AIA. As consultas comunitárias serviram para apresentar o novo dono e publicitar as “inúmeras promessas” de vida melhor permitindo assim uma entrada pacífica. No entanto, e estranhamente, a Portucel Moçambique ainda assim “inventou” e fez uso de um outro mecanismo de controle de terra, elaborou acordos de cedência de terra com os membros destas comunidades, alheios à Lei de Terra, em que os membros das comunidades concordavam em ceder parte das suas terras férteis onde produziam comida em troca de prioridade de emprego, prioridade nas acções de responsabilidade social da empresa e melhoria de condições de vida. Estes actos também já foram sobejamente denunciados.
Para além do acima referido, a Portucel Moçambique recusou-se sistematicamente a fornecer informação de carácter e interesse público, tal como o processo de aquisição dos títulos de DUAT. A JA viu- se obrigada a intentar um processo no Tribunal Administrativo contra o Ministério da Terra e Ambiente, o qual julgou a favor da JA, obrigando o MTA a disponibilizar todos os processos de DUAT a favor da Portucel Mocambique à JA. Apesar dos pedidos, continuamos sem acesso aos relatórios anuais de desempenho ambiental e social, informação sobre herbicidas e agrotóxicos utilizados nas suas plantações.
O posicionamento da WWF sobre esta matéria nao é de forma alguma representativo da opinião pública, nem das organizações da sociedade civil Moçambicana, muito menos da JA!. Estamos cientes da enorme influência da mesma em inúmeros processos, tendo inclusive inviabilizado reivindicações de organizações da sociedade civil nacional junto ao governo, tanto no caso particular da Portucel como em outros. A JA também já se pronunciou publicamente sobre este assunto, e se pesquisar na internet, verá que muitas organizações sociais e ambientais de todo o mundo denunciam activamente a forma de actuação da WWF.
Estes e muitos outros mega-projectos aprovados “legalmente” no nosso país comprovam claramente a captura do nosso Estado por uma elite política e económica nacional, sim, mas principalmente pela elite do capital global, que necessita da primeira para se instalar. Quando falamos de neocolonialismo, não falamos apenas ou nem sequer maioritariamente do Estado português, mas principalmente das companhias portuguesas, e também francesas, chinesas, brasileiras, e tantas outras, muito bem apadrinhadas pelos respectivos Estados. Os nossos recursos – naturais, humanos – estão a ser explorados inescrupulosamente e nem sequer é para o bem do país, é um saque total. Usurpação de terra de camponeses e pescadores, perda de acesso ao mar e rio, poluição, repressão, violência, e um constante desprezo em relação às necessidades da maioria da população moçambicana, não nos vão levar a lugar nenhum. Não nos estão a levar a lugar nenhum.
Agradecemos e louvamos a sua frontalidade ao abordar-nos sobre estes assuntos. Precisamos de fortalecer este debate e trabalhar colectivamente para exigir que este tipo de projectos avance somente quando e se inequivocamente cumprirem com as mais estritas normas ambientais e de direitos humanos.
Junte-se a nós, a exigir que o projecto de Mphanda Nkuwa seja travado até que se avance com um debate público sobre o mesmo, e várias outras questões. Junte-se a nós a exigir que a Total desembolse todos os pagamentos, indemnizações e compensações às empresas nacionais contratadas e às comunidades afectadas pelo projecto de gás, e que em seguida cancele o projecto e se retire de Cabo Delgado.
Acreditamos que quantas mais vozes se levantarem perante as injustiças, mais perto estaremos de encontrar um caminho em frente pautado pelo respeito à dignidade humana e ao meio ambiente, e mais chances teremos de chegar a soluções reais para as nossas crises.
Atenciosamente,
“Dona Anabela”
Justiça Ambiental JA!
Comunicado da JA! sobre a Portucel - https://expresso.pt/sociedade/2021-07-14-Ambientalistas-denunciam-carga-de-eucaliptos-de-Mocambique-para-a-Navigator-ef708738
Manifesto acerca do transporte de madeira da Portucel Florestal - https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2021/07/manifesto-acerca-do-transporte-de-madeira-da-portucel-florestal.html
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Anabela Lemos
Director.JA!FOE Moçambique