Derrotado no Iraque e na Síria, o autodenominado Estado Islâmico alimentou-se do permanente estado de guerra e instalou-se no Afeganistão. Com as tropas estrangeiras de saída do país, o sangrento atentado junto ao aeroporto indicia que os novos tempos com os talibãs no poder continuarão a ser de guerra
Por Margarida Mota
“Oque mais temíamos está a acontecer agora no Afeganistão: os talibãs estão no poder e o Estado Islâmico é os novos talibãs.” Se a dupla explosão em Cabul, junto ao aeroporto, que matou pelo menos 73 pessoas, motivou, nas redes sociais, mensagens de choque e revolta por mais uma tragédia no país, no Twitter o afegão Habib Khan, que vive na capital, procurou ser racional e projetar, em poucas palavras, a negra realidade que aguarda os afegãos.
No momento em que as tropas estrangeiras estão de saída do Afeganistão, e os Estados Unidos veem 13 fuzileiros serem mortos quando se julgavam protegidos dentro do aeroporto, os temidos talibãs surgem como a única frente de resistência e combate ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh), que reivindicou o duplo atentado.
Se havia muitos receios em relação à futura governação talibã, esta chacina (que matou também pelo menos 60 civis afegãos) faz temer o pior em relação ao futuro do país.
“Não sei fazer futurologia, mas todos os ingredientes que estão em cima da mesa, apontam para uma guerra civil no Afeganistão”, diz ao Expresso Cátia Moreira de Carvalho, doutoranda na Universidade do Porto e coautora do livro “Da Radicalização Ideológica ao Terrorismo: Uma digressão” (2020).
A contribuir para esse cenário, a investigadora realça “a ausência de esforços de contraterrorismo no terreno, que até agora eram levados a cabo pelos Estados Unidos e pelas forças afegãs”, as interferências externas e “a ambição de controlo territorial” que o Daesh nunca escondeu.
O Daesh está no Afeganistão desde inícios de 2015, poucos meses depois de se anunciar na cidade iraquiana de Mossul, a 29 de junho de 2014. O permanente estado de guerra em que o território afegão se tinha tornado era permeável ao projeto de internacionalização do novo grupo terrorista, que tinha nascido ele próprio num país em guerra.
“Uma das grandes ambições utópicas do Estado Islâmico era a criação de um califado global. Quantas mais bases conseguissem ter espalhadas pelo mundo melhor e mais corresponderia a essa ambição”, diz Cátia Moreira de Carvalho. “O Daesh, tendo perdido o território na Síria e no Iraque — onde hoje têm uma presença quase irrelevante —, procura outros sítios onde predomine a vulnerabilidade, o caos, a volatilidade, que lhe permita explorar esses ambientes para fazer valer a sua causa e angariar novos recrutas.”
RIVALIDADE SEM DISFARCE ENTRE DAESH E TALIBÃS
Contrariamente ao que acontece entre talibãs e Al-Qaeda (que são aliados), talibãs e Daesh são inimigos indisfarçáveis. Todos estes grupos são muçulmanos sunitas, mas independentemente da afiliação religiosa, travam “uma competição pelo poder”, diz a investigadora.
“O Estado Islâmico é filho da Al-Qaeda [no Iraque], mas quis sempre mostrar que conseguia ser mais e melhor do que o pai. Muito rapidamente ganhou autonomia e tornou-se muito mais radical e muito mais cruel e com aspirações diferentes das da Al-Qaeda”, continua. “Após perder território na Síria e no Iraque vai agora procurar disputar com os talibãs, no Afeganistão. Para a Al-Qaeda, controlar territórios nunca foi uma grande preocupação, mas para o Daesh sim.”
A limpeza possível a seguir à detonação de uma bomba, na cidade de Kandahar, sul do AfeganistãoA limpeza possível a seguir à detonação de uma bomba, na cidade de Kandahar, sul do Afeganistão Marcus Yam / Los Angeles / Getty Images
No Afeganistão, para ganhar legitimidade, o Daesh compôs a sua designação com a expressão “Província Khorasan” (originando as silgas Daesh-PK ou Daesh-K). Khorasan é uma região histórica da antiga Pérsia, que englobava territórios dos atuais Irão, Afeganistão e de países da Ásia central. “Isto decorre de uma necessidade de legitimar” o grupo, “ir buscar raízes históricas e antigas para mostrar que é um legado antigo”.
“Começaram por controlar mais a norte do Afeganistão. Atualmente, as províncias que mais dominam são Kunar e Nangarhar”, no leste, encostadas ao Paquistão. “Não é um grupo muito grande, mas tem algumas células espalhadas pelo país.”
O duplo atentado desta semana, na capital e atingindo tropas norte-americanas, revelou capacidade e oportunidade. Num passado recente, o Daesh evidenciou ainda mais toda a sua crueldade em ataques contra escolas, hospitais, especialmente maternidades, e festas de casamento envolvendo minorias étnicas.
Em abril de 2017, uma operação conjunta de forças especiais norte-americanas e afegãs abateu o emir do Daesh no Afeganistão, Abdul Haseeb Logari, na província de Nangarhar. Quatro anos depois, os atentados junto ao aeroporto de Cabul mostram que a organização motivação, planeamento e capacidade de recrutamento.
Cátia Moreira de Carvalho recorda que os talibãs podem, involuntariamente, ter contribuído para esse potencial. “À medida que foram conquistando território, os talibãs foram abrindo as portas das prisões. No meio daqueles que foram soltos, há combatentes da Al-Qaeda e do Daesh. Agora há o receio que o Daesh vá recrutar junto dessas pessoas.”
Como a Al-Qaeda há 20 anos, o Daesh-K é hoje o rosto da ameaça terrorista num país que volta a estar nas mãos de um grupo com um histórico igualmente extremista e cruel. Está montado o palco para uma longa e sangrenta batalha no Afeganistão. Mais uma.
EXPRESSO(Lisboa) – 27.08.2021