Por Elísio Macamo
O Egídio Vaz escreveu um post abjecto sobre a Ordem dos Advogados de Moçambique que colocava em causa a imagem e bom nome dessa organização. Um dos membros dessa organização sugeriu que ele fosse processado ao abrigo não só dos estatutos da organização que exigem respeito, mas também da própria lei que protege o bom nome das pessoas e das instituições. Por reconhecimento do erro, ou por medo do processo, Egídio Vaz retratou-se junto da OAM e ainda fez uma comunicação pública em que pedia desculpas. Toda a gente ficou feliz, menos aqueles que esfregavam as mãos para ver um defensor do poder – que, diga-se de passagem, tem constantemente ultrapassado a barreira da decência na defesa do poder e no ataque a quem a ele se opõe – na barra do tribunal.
O que eu aposto é que nas hostes do poder e daqueles em nome dos quais o Egídio tem falado não deve ter havido ninguém que lhe tenha chamado atenção quando ele publicou o texto em questão. Não pode ter havido porque não foi a primeira vez que ele se excedeu, logo, todas as vezes que o fez deve se ter sentido encorajado pelo silêncio dos seus camaradas e amigos. Só o medo dum processo que ele poderia perder é que há-de ter contribuído para que ele tomasse a decisão corajosa e cheia de maturidade de se retratar. Aposto também que ele não vai por isso deixar de pensar o que pensa sobre a OAM – e naqueles termos – em privado. Pode ser também que nas suas acções em relação àquela organização seja motivado pelo que ele pensa sobre ela. Não poder dizer o que disse em público não o impede de agir de acordo com o que pensa. A OAM preserva o seu bom nome, mas a esfera pública é privada dum sentimento e dum ponto de vista que pode estruturar o que se faz nos bastidores.
Uma das justificações mais importantes da liberdade de expressão é precisamente esta. Uma sociedade democrática é essencialmente deliberativa. Para que isso funcione é necessário que os membros da comunidade política tenham acesso à informação, incluíndo à opinião de todos, por mais abjecta que ela seja. A liberdade de expressão não protege apenas o direito que as pessoas têm de se exprimirem livremente. Ela promove o debate de ideias tão essencial à procura das melhores soluções para os problemas dum País. É claro que a liberdade de expressão tem limites, sobretudo quando ela é difamatória, gratuita e desvaloriza a dignidade humana. O desafio, contudo, não é apenas de proteger as pessoas e instituições desses ataques gratuitos. É de garantir que essa protecção não asfixie a deliberação e, sobretudo, que ela não seja usada por quem tem o direito de impor leis para se furtar ao escrutínio popular.
Solidarizo-me com qualquer pessoa ou instituição que vê o seu bom nome arrastado na lama. Não concordo, contudo, com o recurso à lei quando o assunto é a discussão na esfera pública, pois uma das consequências disso é a judicialização do debate. Os juristas dizem que “é de lei” como se a existência da lei fosse sinal de justiça e, pior ainda, como se o funcionamento da sociedade dependesse da aplicação de todas as leis que existem. O problema da judicialização é que ela retira à sociedade – no sentido de convivência social sã – a prerrogativa de auto-regulação. Não há praticamente nada na nossa vida privada que não seja passível de protecção pela lei. Não obstante, resolvemos muitos problemas do quotidiano com base no bom-senso e, sobretudo, com recurso à decência.
Só que é aqui onde está o problema. A judicialização pode ser sinal de que o nosso sentido de decência é problemático. Decência, entre nós, é a ausência total de coragem cívica. Se o nosso amigo se excede em alguma coisa, não dizemos nada porque a amizade está acima de tudo. Se o membro do nosso partido erra – ou quer que erremos com ele – não dizemos nada porque o partido está acima de tudo. Se o Presidente da República toma decisões de qualidade duvidosa não dizemos nada – se formos membros do seu partido – porque o respeito por ele está acima de tudo. Se eu continuar nesta veia, facilmente chego à BO onde estão a ser julgadas pessoas que, em parte, foram vítimas da nossa “decência”. Nós só nos pronunciamos quando as coisas estão claras, isto é quando o mau da fita já foi claramente identificado e sabemos que não teremos nada a perder se mostrarmos coragem cívica. Muitas pessoas da Frelimo que fazem ouvir a sua voz contra os arguidos da BO sabem no fundo do seu coração que, no seu lugar, teriam feito exactamente a mesma coisa, ou pior. Não teria sido necessariamente porque são bandidas. Teria sido por serem pessoas decentes à moda moze.
Do lado dos que não são do poder, mas sim da “sociedade civil”, é a mesma postura. Devem assistir a falcatruas dos seus colegas, mas não dizem nada porque a solidariedade interna é mais importante do que a própria decência.
Poderíamos dizer que somos uma sociedade de hipócritas, mas isso não descreveria bem o nosso problema. Somos uma sociedade do medo. A nossa decência é fruto do medo. E porque temos medo, só agimos quando temos a certeza absoluta de que nada nos vai acontecer. Recorremos à justiça por falta de coragem cívica. Quando o Julião Cumbane, o nosso físico nuclear, escreveu coisas abjectas sobre dois grandes juristas da nossa praça, o Teodoro Waty e o Teodato Hunguane, estes meteram queixa na PGR. O físico nuclear é membro da Frelimo e próximo do actual governo. O mais sensato teria sido colocar a questão dentro do partido (do qual são todos membros) e promover uma discussão interna sobre a postura pública dos membros e, acima de tudo, sobre o porquê de o governo aceitar que o seu nome seja sujado em público pela proximidade com esse tipo de gente. Mas que eu saiba, eles não fizeram isso. Preferiram a via segura da justiça à via do reforço da decência.
Eu oponho-me à judicialização do debate na esfera pública por esta razão mesmo. Ela compromete a cidadania e, acima de tudo, promove a decência como conluio. Não é porque eu esteja contra a protecção do bom nome das pessoas e das instituições. Antes pelo contrário! Essa protecção é melhor garantida pela decência no convívio social. Tenho um amigo aqui nas redes, o Ricardo Santos, que tem uma cultura de debate extremamente nociva à saúde da esfera pública. Inúmeras vezes ele acusou pessoas com opiniões diferentes da dele de serem promotoras do terrorismo ou de serem inimigas de Moçambique. São posts difamatórios que mereceriam processos jurídicos. Mas eu não estaria de acordo com isso porque a liberdade de expressão é preciosa e, no fundo, porque quando se judicializa o debate é porque falhamos como membros duma sociedade. Fiz “screenshots” de alguns dos seus posts e colei-os num post que fala sobre a matéria. Aposto que nenhum amigo dele lhe chamou atenção pelo menos em privado. E, claro, ninguém vai se atrever a se distanciar daquele tipo de conteúdos publicamente porque todos somos decentes. Só aqueles que estão do outro lado da trincheira política é que vão fazer isso.
No meu mural não permito manifestações de falta de respeito pelos outros. Quando alguém se excede, vou ao inbox e peço para retirar o comentário, reformula-lo ou não voltar a fazer. Já exigi, numa discussão no meu mural, que o Julião Cumbane pedisse desculpas ao Carlos Castel-Branco por insultos que ele tinha proferido nessa discussão (algo que ele fez, felizmente).
Congratulo-me por constatar que dum modo geral aqueles com quem convivo mais no Facebook olham para o debate mais ou menos dessa maneira. É assim que devia ser. Se ao nível da convivência social as coisas não funcionam, as leis não vão resolver nada. Só vão servir para transformar a sociedade numa tirania. Já não vamos poder dizer que o governo é incompetente, que a oposição é fraca, que uma determinada política compromete o bem-estar das pessoas, etc. porque tudo isso atenta contra o bom nome e a reputação das pessoas e das instituições.
Vamos ficar condenados ao silêncio para nutrir uma sociedade de medo. Não acho isso saudável.