Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola
Com o passar do tempo, o movimento original da Negritude acabou sendo desviado, por pensadores conservadores, que começaram a defender uma tese fixista sobre a natureza do negro. Frente a este desvio e questionando teses senghorianas, Stanislas Adotevi defende uma concepção do negro que articula de maneira indissociável a identidade e a história dos povos negros.
Destaca o autor, que a particularidade negra é que, entre todos os explorados, os negros foram os mais explorados: «o que o negro produz em seu trabalho, reproduz a sociedade dos outros, mas não lhe é retribuído para viver plenamente sua dignidade. Foi o negro quem fez a riqueza agrícola dos Estados Unidos e que submetido aos imperialismos possibilitou a opulência escandalosa de tais impérios».
Não há como tratar de nenhuma particularidade negra fora desta particularidade histórica. Sendo a história e a identidade do homem intrinsecamente vinculadas, a identidade negra constrói-se historicamente e historicamente deve ser compreendida. Contudo, os negros devem tornar-se sujeitos históricos que mudem o curso da história vivida, em que foram reduzidos a mero objecto em processos de exploração e opressão que marcaram sua particularidade.
A única possibilidade que o negro tem de ser ele para ele próprio, de adquirir sua identidade, repousa na necessidade que tem de produzir os meios de realização de sua própria história: «a posse de si por si mesmo que ele busca na 'particularidade' deve impulsioná-lo a exigir uma acção que coloque fim ao sistema histórico que o tem situado fora da história».
Ou seja, o reconhecimento da identidade negra passa necessariamente pela reapropriação prática de sua essência de homem e, naturalmente, pela [destruição do sistema] que o tem negado enquanto homem. Destarte, tomada de consciência do negro deve significar uma mudança do curso das coisas, uma nova interpretação da cultura, uma orientação nova da existência: uma revolta consciente. Não mais se trata de reconhecer ao negro uma existência teórica, mas de «o reencontrar na afirmação contra sua dupla negação: a escravidão e a colonização».
Adotevi não pretende, portanto, que esta afirmação se realize ao nível teórico de uma ciência antropológica, mas sim de maneira prática na história real dos povos negros. A África dá ao negro a consciência do que ele é: «um Negro. O Negro, em troca, deve lutar para... tomar posse de si mesmo na intimidade colectiva de um sofrimento racial imemorialmente negado»
Frantz Fanon 19[25]-19[61] nasceu na ilha de Martinica, território francês situado na América Central. Ainda jovem, durante a Segunda Guerra, percorreu a África do Norte como soldado. Retornando a Martinica participou da campanha eleitoral de Aimé Césaire. Partindo para a França em 19[46], inscreve-se na Faculdade de Medicina de Lyon e aproveita sua estadia também para adquirir uma formação sólida em filosofia e literatura, seguindo Cursos de Jean Lacroix e de Merlau-Ponty, bem como, lendo obras de Sartre, Kierkegaard, Hegel, Marx, Lénin, Husserl e Heidegger, entre outras.
Após terminar o curso de medicina em 19[51] retorna a Martinica e posteriormente a França, onde se casa, partindo em seguida para a África [Argélia], tornando-se médico-chefe na clínica psiquiátrica de Blida-Joinville. Torna-se argelino engajando-se com os argelinos na luta pela libertação do país que sofria o jugo colonial francês desde 18[30].
Várias vezes participou de congressos pan-africanos como membro da delegação da Argélia, tornando-se um importante porta-voz do país. Contraindo leucemia em 19[60], continua suas actividades intelectuais, vindo a morrer em Dezembro de 19[61]. A independência da Argélia ocorrerá no ano seguinte, em 19[62].
Utilizando o conceito de [alienação] desenvolvido por Hegel e Marx, Fanon analisa os mecanismos de dominação na formação da consciência do povo colonizado, destacando os dois pólos antagónicos na situação colonial: o colonizador e o colonizado. Em Os Condenados da Terra, Fanon escreve: «é o colonizador quem tem feito e continua a fazer o colonizado. O colonizador tira sua verdade, isto é, seus bens, do sistema colonial». «Este antagonismo é acentuado pelo racismo contra o colonizado, tido como preguiçoso, impulsivo e selvagem. O colonizado introjeta a dominação vivendo um complexo em que passa a negar-se como negro a fim de se pretender um "negro-branco».
Escreve Fanon: «todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio do qual se instala um complexo de inferioridade por ter sido destruída a sua identidade cultural, fica em oposição à linguagem da nação civilizadora, ou seja, da cultura metropolitana. Quanto mais o colonizado se amoldar aos valores culturais da metrópole, tanto mais se afastará da sua própria cultura. Ele será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura... (...)».
O prof. Westermann, em The Africain Today, escreve que existe um sentimento de inferioridade dos Negros que experimentam sobretudo os evoluídos, e que, sem cessar, eles se esforçam por dominar. A maneira empregada para tanto é, acrescenta, frequentemente ingénua: «Vestir os trajes europeus ou as roupas da última moda, adoptar as coisas que os europeus fazem uso, suas formas exteriores de civilidade, florir a linguagem com expressões europeias, usar frases pomposas em línguas europeias, falando ou escrevendo, tudo isso é feito para tentar atingir um sentimento de igualdade com o Europeu e seu modo de existência»
Oprimido pelas instituições sociais e [cindido] de seu passado histórico, ao colonizado que vai se conscientizando somente resta a alternativa da revolta aberta, retomando seus valores tradicionais, que em razão do colonialismo, haviam sido despojados de suas funções vitais. Observa Fanon que mesmo após a conquista da independência pelas antigas colónias a [mentalidade] do antigo colonizado pouco muda.
Comentando tal passagem e eu me apoio em Azombo-Menda e Enobo Kosso que «a nova burguesia que se cria nos jovens Estados adopta com respeito às massas a mesma atitude que a dos antigos colonizadores: ela busca lucrar sobre o trabalho das massas aldeãs que explora cinicamente».
A burguesia colonial subdesenvolvida que toma o poder ao fim do regime colonial, acaba mantendo a mesma dinâmica de dominação. Frente a esta situação afirma Fanon que «em um país subdesenvolvido, uma burguesia nacional deve, imperiosamente, trair a vocação à qual estava destinada e se colocar à escola do povo, isto é, colocar à disposição do povo o capital intelectual e técnico que ela recebeu durante sua passagem nas universidades coloniais», do contrário continuará cinicamente numa postura anti-nacional.
Frente a essa situação Fanon reflecte sobre os elementos necessários à efetivação da soberania popular. É preciso que um programa e uma nova concepção social e política adaptada à realidade concreta sejam apropriadas pelo povo em um processo de conscientização: «Um programa é necessário a um governo que pretende verdadeiramente libertar politicamente e socialmente o povo. Programa económico, mas também doutrina sobre a repartição das riquezas e sobre as relações sociais. De facto, é preciso uma concepção de humanidade».
Para Fanon, os dirigentes, colocando-se a serviço do povo, devem mobilizar as massas a actuarem contra as forças opressivas, contra todas as formas de [alienação] e subdesenvolvimento: «o importante é que os homens adquiram a cada dia uma consciência maior da necessidade de sua incorporação na sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motor dela mesma».
Esclarecendo sua concepção de nacionalismo, Fanon explicita que necessariamente o Governo deve estar a serviço do povo: «A expressão viva da nação é a consciência em movimento do conjunto do povo. É a práxis coerente e esclarecida dos homens e das mulheres. A construção colectiva de um destino é a assunção de uma responsabilidade à dimensão da história... O Governo nacional, se ele quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo, para os deserdados e pelos deserdados. Nenhum líder, qualquer que seja seu valor, pode substituir-se à vontade popular e o Governo popular deve, antes de se preocupar com o prestígio internacional, restituir dignidade a cada cidadão..., encher os olhos de coisas humanas, desenvolver um panorama humano porque habitado por homens conscientes e soberanos».
De facto, a reflexão de Fanon é sem dúvida penetrante. A revolução argelina evidenciou perspectivas sobre a acção popular. Segundo ele a revolução rendeu um grande serviço aos intelectuais, na medida em que os colocou em contacto com o povo, permitindo-lhes ver de maneira extremada «...a inefável miséria do povo e ao mesmo tempo assistir o despertar de sua inteligência, o progresso de sua consciência...».
Alguns meses antes de morrer Frantz Fanon escreve uma [comovente] carta a Roger Tayeb, seu amigo, em que trata da questão da morte e o sentido da vida. Ele diz que a morte sempre nos acompanha e que «nós não somos nada sobre a terra, se não somos, desde logo, cativos de uma causa, a dos povos, da justiça e da liberdade»
(Continua)
Manuel Bernardo Gondola
Em Maputo, aos [14] de Outubro 20[21]