Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola
A preocupação dominante na reflexão de significativa parte de filósofos africanos, foi elaborar uma filosofia própria, africana, enraizada em seu contexto histórico e social que sofria transformações profundas com o processo de [descolonização] pelo qual passavam vários povos africanos. Marcada pelas condições contextuais do próprio exercício do filosofar, tal elaboração girava em torno de dois aspectos: a) O exame das condições necessárias para a emergência de uma verdadeira filosofia africana. b) A insistência sobre o problema das transformações culturais e, no sentido mais amplo, sobre a questão política.
Curiosamente, muitos temas tratados por filósofos africanos período [50], [60] e [70] são semelhantes aos tratados por filósofos latino-americanos na mesma época, por exemplo; Leonardo Zea e Augusto Salazar Bondy. Entre eles estão o carácter e a finalidade da filosofia, o mimetismo na cultura colonizada, a alienação cultural, a relação entre o Eu e o Outro fora dos parâmetros da racionalidade europeia, a distinção de uma razão branca e uma razão negra, a relação entre filosofia e revolução, a questão da consciência e libertação nacionais, a dialéctica da identidade, diversidade cultural e humanismo, filosofia e religião, filosofia e subdesenvolvimento, a filosofia como factor de libertação e a responsabilidade do filósofo em meio ao seu contexto histórico.
Por exemplo, Edward Blyden 18 [32] -19 [12] foi, provavelmente, o primeiro filósofo africano a tratar de maneira mais aprofundada o mimetismo servil, a alienação cultural dos negros africanos e a necessidade de mudanças do método pedagógico de ensino. Embora críticas possam-lhe ser feitas quanto a sua luta pela emigração dos negros da América para a África e devam-lhe ser feitas quanto suas análises sobre os perigos da contaminação racial dos povos africanos pela influência europeia ou quanto a outros pontos polémicos, o facto é que, este pensador nascido em 18 [32] em São-Tomás, nas Antilhas Dinamarquesas, escreveu alguns textos que ainda hoje guardam actualidade no contexto dos povos dependentes.
Segundo Blyden, os sistemas e métodos de educação europeia a que eram submetidos os negros, especialmente nos países cristãos, eram um mal que precisava ser corrigido. Em sua maior parte, os negros que viviam em países estrangeiros contentavam-se em ser espectadores passivos das acções dos outros povos; a educação que recebiam acabava produzindo neles mesmos, uma [dúvida] sobre sua própria capacidade e destino pessoais, transformando-lhes a estrutura intelectual e social.
Lendo e estudando escritos estrangeiros, tomavam o que era exaltado nessas obras como referência para o que podiam ou deviam fazer, esforçando-se por [copiar e imitar] o que se lhes era apresentado. Neste sistema de educação, a opinião comum entre os negros era que «o mais importante no conhecimento consiste em aprender o que outros homens - estrangeiros - dizem sobre as coisas, e inclusive, sobre a África e sobre os próprios negros. Eles [os negros] aspiram familiarizar-se, não com o que é realmente, mas com o que está impresso nos livros que lêem».
Nesses livros aprendiam que o negro era um ser inferior, degradado, feio, sujo que não conseguia aprender, por si próprio, o que o poderia elevar, esclarecer e refinar. Contestando a essa situação destacava Blyden, que os negros têm uma história escrita por eles próprios e que a ordem verdadeira das coisas consiste em primeiro fazer a história, para em seguida escrevê-la. Tratava-se, pois, de agir com vistas a enfrentar a alienação cultural.
Afirmava ele que para a nação africana fazer-se independente era preciso escutar o canto simples dos irmãos, que resgatavam a história, a tradição, os eventos maravilhosos e misteriosos da vida tribal ou nacional, as superstições, recuperando a força da raça, da cultura. Era preciso aproximar a Universidade desses elementos, dessa realidade. Com isso, os estudantes poderiam deslocar sua atenção daqueles livros e se misturar aos irmãos, propiciando uma nova inspiração, ideias novas e vivas.
Léopold Sédar Senghor, nascido em 19[06] no Senegal desenvolveu, além de actividades literárias, uma dupla trajectória como docente e político, tornando-se professor de Línguas e Civilizações Africanas na École de France d'outre-mer e, após exercício parlamentar, vindo a ser Presidente da República do Senegal. O percurso de suas obras teóricas é similar ao de alguns filósofos da libertação no que se refere à sucessão das temáticas, ressalvando-se apenas o carácter de se referir a África e não a América Latina. Em 19[61] escreve Nação e Caminho Africano do Socialismo; três anos depois escreve Liberdade I, Negritude e Humanismo; em 19[76], publica Para uma Releitura Africana de Marx e de Engels.
Comenta Aimé Césaire sobre a origem do conceito de negritude que sua criação «Correspondia a uma necessidade...o negro na França via uma espécie de assimilação diminuída em nome do universalismo que ameaçava suprimir todas as características nossas. Dito de outro modo, estávamos ameaçados por uma terrível despersonalização. Isso era muito grave em razão do momento histórico em que se debatia o problema da descolonização de povos dominados por países ocidentais».
A negritude afirmava, que o homem negro era tão homem quanto qualquer outro e que havia realizado obras culturais de valor universal, às quais, os que empunhavam a negritude queriam ser fiéis. Cada povo diz Senghor «não desenvolveu mais que um ou vários aspectos da condição humana. A civilização ideal seria aquela que, como esses corpos assim divinos surgidos da mão e do espírito do grande escultor, reunisse as belezas reconciliadas de todas as raças».
Senghor foi um dos maiores divulgadores da negritude, que se consolidava como um movimento cultural de resgate/construção da identidade negra, buscando descobrir a alma negra cuja característica essencial seria a emoção: «A emoção é negra, assim como a razão é helénica». A atitude do negro face ao mundo e aos outros é de abandono e comunhão. Ou seja, em si o negro é um campo de impressão, que através da sensibilidade descobre o outro. Da mesma forma que nesta interacção ele não vê o objecto, mas o sente, «é na sua subjectividade, no limite de seus órgãos sensoriais que ele descobre o outro». A emoção, como Senghor observa, é o que possibilita o elevar-se a um estágio superior de consciência. A emotividade é o elemento essencial e constitutivo do negro. A partir dela Senghor constrói uma [metafísica], trata da religião e demais elementos da cultura negra e particularmente do estilo negro-africano, que tem por características peculiares a imagem e o ritmo. Azombo-Menda e Enobo Kosso, citando e comentando Senghor nos esclarecem essas teses.
«As actividades técnicas e as relações sociais reflectem a psicologia própria ao negro africano cuja emoção consiste em um 'apoderar-se do ser integral consciência e corpo pelo mundo irracional, irrupção do mundo mágico no mundo da determinação'. Enfim, a razão negra se distingue da razão branca, porque ela percorre as artérias das coisas para se 'alojar no coração vivo do real.' 'A razão europeia é analítica por utilização, a razão negra, intuitiva por participação' . Em suma, é da especificidade biológica do negro e de sua sensibilidade que Senghor deduz a conduta, a cultura e a razão negro-africanas».
Analisemos um pouco mais a relação entre o Eu e o Outro, através da simpatia e da distinção entre razão branca e negra. A afirmação de Senghor que o negro não vê o objecto, mas o sente, deve ser entendida considerando-se o homem negro como um campo sensorial, sendo realizada na sua subjectividade a descoberta do Outro. Neste campo sensorial há um [movimento centrífugo] do sujeito ao objecto, e neste caso, do Eu sobre as ondas do Outro. Esta figura não é de forma alguma uma metáfora, pois como destaca Senghor, a física contemporânea descobriu a energia sob a matéria em forma de ondas e radiações:
«Eis pois o Negro-africano, o qual simpatiza e se identifica, o qual morre para si a fim de renascer no outro. Ele não assimila, ele se assimila . Ele vive com o outro em simbiose, ele conhece o outro…» Sujeito e objecto são, aqui, dialecticamente confrontados no acto mesmo do conhecimento, que é acto de amor. «Eu penso, então eu existo', escrevia Descartes. A observação já foi feita, pensa-se sempre alguma
coisa. O Negro-africano poderia dizer: 'Eu sinto o Outro, eu danço o Outro, então eu sou.' Ora, dançar é criar, sobretudo quando a dança é dança do amor. É este, em todo o caso, o melhor modo de conhecimento»
Quanto à razão negra e a branca, Senghor destaca que o negro é um homem da natureza, vivendo tradicionalmente da terra e pela terra, no cosmos e pelo cosmos. Por sua sensibilidade é um sujeito que se relaciona com o objecto sem intermediário, sendo sujeito e objecto simultaneamente. O Negro é «sons, odores, ritmos, formas e cores; eu digo tato antes de ser visão, como o Branco europeu. Ele sente mais do que vê: ele se sente. É em si mesmo, em sua carne que ele recebe e experimenta as radiações que emite todo existente-objecto. Movido, ele responde ao apelo e se abandona, indo do sujeito ao objecto, do eu ao Tu sobre as ondas do Outro».
O Eu não assimila o outro, mas se identifica com o outro. Isto se dá, porque a razão negra não é discursiva, mas sintética, não sendo antagonística, mas simpática.
(Continua)
Manuel Bernardo Gondola