Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola
Hoje, vou falar duma obra importantíssima do século [XX] do iluminismo francês de François-Marie Arouet [Voltaire], chamada «Tratado Sobre a Tolerância» de 17[63]. Nesta obra Voltaire, ataca o fanatismo religioso e convida os religiosos a tolerância. O subtítulo da obra é, A Propósito da Morte de Jean Calas, portanto Voltaire está centrado nesse história de Calas, e ao tratar da história dele ele fará essa menção a tolerância religiosa.
Jean Calas, um velho de [68] anos e a sua esposa eram protestantes, e a França de sua época era predominantemente católica; o catolicismo era a religião oficial do Estado. Louis um dos filhos do casal, se converteu ao catolicismo em 17[56], e entre [13] e [14] de Outubro de 17[61] um outro filho do casal chamado Marc- Antoine foi encontrado morto no andar térreo da residência da família.
Então, temos aqui que o pai e a mãe eram protestantes, um dos filhos do casal se converteu ao catolicismo e outro um tempo depois foi encontrado morto, segundo rumores, Jean o pai matou o próprio filho porque o filho pretendia se converter, também como irmão ao catolicismo.
No interrogatório, a família inicialmente [fingiu] que o filho tinha sido morto por um ladrão e depois declararam que o filho tinha sido encontrado enforcado no andar térreo. Porquê então declararam inicialmente que o filho tinha sido assassinado? Porque o suicídio era um crime abominável e o corpo do suicida se tornava impuro, por isso, eles tinham arranjado as coisas de tal modo, que o suicídio parecesse um assassinato.
Voltaire, avisado sobre esse caso que estava acontecendo [promoveu] uma campanha que era para tirar Calas da prisão, porém a iniciativa foi totalmente infrutífera, não deu em nada. Em [9] de Março de 17[62], Jean Calas foi sentenciado à morte na roda e a população católica local queria isso. A roda era um instrumento de tortura utilizado para pena de morte desde antiguidade, o condenado era preso no suplício da roda e tinha seus ossos totalmente quebrados por um martelo até à sua morte. Em [10] de Março de 17[62] Jean Calas foi morto na roda, ele clamou inocência até o final.
Diz Voltaire «ele foi quebrado vivo» e em [9] de Março de 17[65], a morte dele foi em 17[62], em 17[65] ele foi considerado inocente e declarado, portanto inocente de forma póstuma. Eis então o caso que Voltaire acompanhou e justamente por isso, ele escreve a obra «Tratado Sobre a Tolerância», uma das obras principais sobre essa temática na idade moderna, na época o livro foi proibido de circular na França, devido os combates [conflitos] que existiam entre católicos e protestantes.
Analisando este caso, Voltaire destaca que a religião pode deixar de lado a questão da caridade para praticar injustiças e ao invés de promover amor e solidariedade, a religião acaba promovendo ódio e perseguição. Diz Voltaire: «para superar o fanatismo e diminuir o número de maníacos a melhor maneira era submeter essa doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente os homens, essa razão é suável, humana, inspira a indulgência, abafa discórdia, fortalece virtudes, torna agradável obediência às leis, mais ainda do que a força é capaz».
Percebe-se então, que Voltaire depositava uma enorme esperança no racionalismo [razão] como promotora de solidariedade e como promotora de tolerância. Durante a obra Voltaire, apresenta inúmeros casos de tolerância entre os povos para tentar mostrar para os franceses a importância da tolerância na convivência entre os homens.
O texto visa mostrar aos leitores, que a tolerância é viável, é o caminho certo para seguir, mas claro nós encontramos alguns preconceitos presentes na obra de Voltaire, destarte como encontramos por exemplo, preconceitos presentes em outros autores da época como Hegel.
Tolerância e intolerância, são duas formas opostas [antagónicas] de como tratar o próximo, de como tratar o diferente. A tolerância é a concepção de que, as relações humanas devem-se dar de forma pacífica mesmo se há grupos com concepções particulares diferentes, concepções religiosas. Voltaire, durante a obra nos apresenta vários exemplos históricos e tem como pano de fundo aqui, também o debate sobre os Direitos Humanos e Direitos Naturais.
No capítulo [VI], intitulado Se a Intolerância pode ser de Direito Natural e de Direito Humano, ele diz o seguinte: «o direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. O grande princípio universal é não faças o que não gostaria que te fizessem. Ora, não se percebe como de acordo com esse princípio o homem poderia dizer ao outro: acredita no que acredito e no que não podes acreditar ou morrerás. Actualmente limitam-se a dizer em alguns países: crê ou te repilo, crê ou te farei todo mal que poder. Monstro não tem nem religião, então não tens religião alguma; terás de ser um motivo de horror para teus vizinhos, tua cidade e da tua província».
Vemos aqui, claramente esse exemplo de intolerância em relação ao diferente, em relação àquele que não crê nas mesmas crenças que eu creio e em relação àquele que não tem a mesma visão do mundo que eu tenho.
Mais para frente no capítulo [XI], intitulado Abuso da Intolerância ele diz o seguinte: «mas, como cada cidadão só deverá acreditar em sua razão e pensar o que essa razão esclarecida ou enganada, exactamente com tanto que ele não perturbe a ordem, pois não depende do homem acreditar ou não acreditar, mas depende dele respeitar os costumes de sua pátria».
Já no capítulo [XII], intitulado A Cerca da Tolerância Universal, ele diz: «não é preciso uma grande arte, uma eloquência muito rebuscada para provar que os cristãos devem tolerar uns aos outros. Vou mais longe, afirmo que é preciso considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê? O turco meu irmão? O chinês? O judeu, siamês? Sim, certamente, porventura não somos todos filhos do mesmo pai e criatura do mesmo Deus?»,
E, para finalizar destaco aqui a Oração da Tolerância, a Oração a Deus, que Voltaire destaca no capítulo [XIII]. Diz ele: «não é mais aos homens que me dirijo, é a Ti. Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos: se é permitido a frágeis criaturas perdidas na imensidão, imperceptíveis ao resto do Universo, ousar-Te pedir alguma coisa, a Ti, cujo decretos são tão imutáveis e internos, digno a Te olhar com
piedade os erros de correntes inerentes à nossa natureza; que esses erros não nos tragam calamidades. Tu que absolutamente não nos deste um coração para que nos odiássemos, nem mãos para que nos matássemos, faz com que nos ajudemos mutuamente a supor os fardos de uma vida penosa e passageira; que as pequenas diferenças entre as vestes que cobrem nossos débeis corpos, entre todas as nossas linguagens insuficientes, entre todos os nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões insensatas, entre todas as nossas condições tão desproporcionadas a nossos olhos, porém tão iguais perante os Teus; que todas essas pequenas nunces que distinguem entre si os átomos chamados homens não sejam mais motivos de ódio e de perseguição; que esses que acendem círios à luz do meio-dia para Te celebrar suportem aqueles, que se contentam com a luz de Teu sol; que esses que cobrem suas vestes com uma toalha branca para dizer que é preciso Te amar não detestem os que dizem o mesmo quando usam um manto de lã negra; que seja a mesma coisa Te adorar em um jargão derivado de uma antiga língua ou em dialecto mais moderno; que esses cujas vestes são tintas de vermelho ou de roxo e que dominam uma pequena parcela de um pequeno fragmento da lama deste mundo e que possuem alguns fragmentos arredondados de um certo metal gozem sem orgulho daquilo, que chamam de grandeza e de riqueza e que sejam contemplados pelos outros sem inveja; pois Tu sabes que nessas vaidades não existe nada a ser invejado, nem nada de que se orgulhar.
Que todos os homens possam recordar que são irmãos! Que encerem com horror toda tirania exercida sobre as almas, assim como sentem execração pelos salteadores que arrebatam pela força o fruto pacífico do trabalho e da indústria! Se os flagelos da guerra forem inevitáveis, que não nos odiemos, nem nos dilaceremos uns aos outros no seio da paz e empreguemos este instante que é nossa existência a bendizer igualmente em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, Tua bondade que nos deu este instante».
Manuel Bernardo Gondola
Em Maputo, aos [17] de Outubro 20[21]