Nasci em Quelimane, saí de lá por volta dos 14/15 anos de idade.
Quando olho para o caminho que percorri, agradeço a Deus ter nascido nesta pequena e pacata cidade, na foz do rio dos Bons Sinais, em Moçambique, onde as circunstâncias me proporcionaram uma infância verdadeiramente feliz e equilibrada, entre a natureza, muito presente no dia a dia, seres humanos de diferentes raças e credos, numa comunidade vibrante e cheia de energia, num mundo pequeno inserido num oásis num espaço muito mais amplo, africano. Foi aí também que senti o sopro dos ventos de mudança que afetaram todas as nossas vidas futuras, a Revolução, o princípio da descolonização, o fim do último império ocidental.
Vivia na marginal, a 50 metros da Piscina Municipal, com o rio dos Bons Sinais pela frente e a Igreja de Nossa Senhora do Livramento ao lado.
Os meus pais educaram-me com princípios e valores cristãos, respeitador, autoconfiante, mas sem orgulhos deslocados ou sentimento de qualquer forma de superioridade, com carinho quanto bastasse, mas sem proteção especial. Conferiram com isso “asas” à minha resiliência e adaptabilidade, essenciais no meu futuro percurso.
Lembro-me de viver entre a Piscina, o Clube Náutico, a Escola Vasco da Gama, o Colégio Paulo VI e, depois, o Liceu João Azevedo Coutinho, já nos arredores da cidade.
Guardo memórias de cheiros e sons do rio dos Bons Sinais, onde nadei, brinquei e velejei, dos amigos da marginal, dos Sedeval Martins, meus amigos de infância e adolescência, da Capitania do Porto e da sua rampa, onde se picava a ferrugem dos cascos metálicos das embarcações, dos passeios e das caçadas nas savanas africanas, das praias, em especial da fabulosa praia de Zalala.
Guardo também memórias do meu irmão, já falecido, o Manuel, maior do que a vida, um verdadeiro enfant terrible, que deixava o meu pai com “os nervos em franja,” mas que tinha “ um coração do tamanho do mundo ” e que se tornou uma personagem na cidade.
Lembro-me que Quelimane na sua pequenez era estranhamente cosmopolita, uma junção de europeus, africanos, indianos e alguns chineses, com duas igrejas e uma mesquita, parte natural da comunidade.
Regressado de África em 1975, fui para o Brasil, onde passei da pacata Quelimane, com uma pequena paragem em Viseu, para a gigantesca metrópole de São Paulo. Curiosamente, não me senti amedrontado, algo de selvagem em mim, nutrido em África, me preparou para esse choque e para muitos outros seguintes.
De volta a Portugal, entrei na Escola Naval em 1979. Curiosamente, e por feliz coincidência, aportámos no mesmo curso três quelimanenses: eu, o João Azevedo e o José Costa e Castro, este último meu companheiro nos submarinos durante muitos anos.
Quiseram as circunstâncias da vida que o mar, na sua dimensão, a solidão e a torça dos elementos me fizessem sentir tantas vezes a minha terra natal, na imensidão das suas planícies e savanas, nas tempestades tropicais e na força indomada da natureza que nos fazia sentir pequeninos, indefesos e com um verdadeiro sabor da fragilidade humana. Nestas ocasiões, os cheiros, os sons e os esplendor do pôr e do nascer do sol prendiam-me num limbo transcendente de quase felicidade.
Após uma longa carreira na Marinha de Guerra Portuguesa, grande parte realizada em submarinos, as circunstâncias vieram tornar-me o coordenador do processo de vacinação contra a covid-19.
O processo de vacinação contra a Covid-19 veio colocar Portugal numa posição cimeira e singular, tendo sido o primeiro país do Mundo a ultrapassar a marca de 85% de vacinação completa.
Este sucesso não é meu, mas de toda uma comunidade que se soube unir em torno de uma ideia simples: combater um vírus mortal e resgatar o controlo das nossas vidas. Isto implicou um esforço coletivo gigantesco, em que reagimos, de forma excecional, enquanto comunidade unida por um desígnio. Estou em crer que vencemos a primeira batalha, mas que a “guerra” continua e que nada está ainda garantido a longo prazo. E é sobre isto que gostaria de escrever algumas poucas palavras e através delas lembrar Quelimane.
Enquanto privilegiado que fui, pela posição e pela sorte, não posso esquecer de que tínhamos uma relação muito desigual para com uma grande comunidade de africanos à nossa volta. Durante a crise e a entrada da Troika para Portugal, voltei a pensar em Quelimane, interiorizando melhor o que se sente quando nos acusam de indolentes, quando rebaixam a nossa estima e nos roubam a esperança. Por isso, Quelimane não é para mim uma saudade, mas uma permanente inspiração.
O mundo ocidental tem de fazer a sua “guerra” de vacinar as partes menos desenvolvidas do planeta Terra; vivemos todas na mesma nave que circula o Sol, uma nave limitada e interconectada pela globalização. Na mesma Quelimane onde nascemos, estão seres desprotegidos, sem acesso a tantas coisas que consideramos banais. A essa e outras cidades, devemos fazer chegar as vacinas contra a covid-19, devemos lutar por isso enquanto privilegiados que somos.
Assim termino a minha história sobre Quelimane, dizendo que Quelimane me gravou no coração a certeza de que não há seres humanos menos importantes ou descartáveis nem lugares que possam ser esquecidos e que não mais deixarei que a minha consciência descanse e que seja “envenenada” por uma ética e moral relativa, focada só num pequeno mundo próximo.
Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo
Lisboa - 11.11.2021