Por: Elisio Macamo
Não sei como se ensina direito em Moz. Os pronunciamentos que tenho visto de alguns juristas nos vários debates pelas redes sociais dão-me, contudo, a impressão de que se ensina o direito da mesma maneira que se ensinam outras áreas. Formam-se essencialmente técnicos, ou melhor, trabalhadores manuais com muita habilidade para aplicar os logaritmos de forma aceitável sem grande necessidade de reflexão sobre as bases epistemológicas por detrás da constituição desses mesmos logaritmos. Existem excepções, claro, que confirmam a proverbial regra.
Escrevo esta reflexão a propósito do sermão que o Juiz do caso lá da BO pregou ontem a propósito do pedido da Ordem dos Advogados. Falou muito sobre a necessidade de se chegar à “verdade material” e a importância de levar a sério o facto de estar em julgamento um caso que envolve uma grande fraude ao Estado moçambicano. Aos meus ouvidos de leigo em direito, mas aficionado da epistemologia, o sermão soou como uma declaração de amor à ilusão da certeza e mais uma demonstração do iliberalismo que grassa na nossa esfera pública. Para dissipar qualquer dúvida – e facilitar a leitura – eu nutro simpatias pelas pessoas que estão a ser julgadas. Espero, contudo, apresentar a minha opinião duma forma que permita a interpelação dos seus próprios méritos.
O meu ponto de partida é a ideia da verdade. Na ciência foi sempre controversa e hoje muito mais ainda. Embora existam fortes correntes “realistas” que insistem na ideia da verdade como algo independente da nossa vontade, existem outras correntes que insistem, e eu concordo com elas, na ideia de que a verdade não se encontra aí fora à espera de ser recuperada por qualquer pessoa suficientemente “objectiva”. A verdade é função dos procedimentos aplicados, portanto, não necessariamente o reflexo da “realidade”. Alguma filosofia da ciência fala daquilo que chama de “theory-laden facts” (factos impregnados pela teoria).
Esta posição é difícil de “tragar” para quem organiza a sua vida em torno de certezas. É também um desafio enorme para quem tem dificuldades com o pluralismo, razão pela qual os processos na base dos quais essas pessoas procuram pela tal verdade costumam estar imbuídos por um espírito de intolerância à diferença, impaciência em relação aos meios e, acima de tudo, a idolatria dos fins. Quando o sistema americano de justiça impõe como critério a “verdade” que se estabelece acima de qualquer dúvida razoável, ele não está a celebrar a certeza. Está a reconhecer a falibilidade humana que permite, mais tarde, corrigir e aprender.
O julgamento da BO é marcado por duas incongruências. A primeira é a presença da Ordem dos Advogados como assistente do Ministério Público. Deve haver uma justificação jurídica que eu ainda não vi exposta claramente por ninguém. Não percebo porque uma Ordem que representa uma certa profissão vai ajudar alguém a discutir contra os seus próprios membros. A segunda incongruência consiste nas atitudes do Juiz desde que pegou neste caso. Já referi várias vezes a citação que lhe é atribuída segundo a qual ele seria alérgico à corrupção nas vésperas do início do julgamento. É seu direito, claro, como indivíduo. Mas como Juiz, essa alergia é irrelevante. A sua função, numa ordem política liberal, é defender a justiça. Das poucas vezes que assisti às sessões, vi-o formando dupla com a Procuradoria contra as pessoas que estão a ser julgadas.
Dá a impressão de já ter opinião formada sobre o desfecho do caso. Até parece uma tese em ciências sociais sem rigor metodológico. O pesquisador já sabe de antemão o que vai concluir. Quando pregou ontem sobre o facto de o Estado ter sido defraudado em biliões, deixou transparecer que a sua preocupação não parece ser salvaguardar a justiça, mas sim usar o seu poder para encontrar razões que lhe permitam incriminar e condenar aqueles que para ele são culpados. Tem-me arrepiado esta maneira de pensar e praticar a justiça.
Como sei que algumas pessoas lêem sem o devido cuidado, preciso de explicar o que não estou a dizer. Não estou a dizer que os que se encontram em julgamento são inocentes. Nem que são culpados. Estou a dizer que independentemente da gravidade das coisas de que são acusados, o bem que todos nós somos chamados a proteger neste caso não é o Estado defraudado. É o Estado como entidade nobre que protege a dignidade das pessoas. Esse Estado nobre só pode fazer isso se os seus servidores tiverem consciência da sua falibilidade, algo impossível onde a preocupação com a certeza domina.
Assim, “verdade material” não é o que algum declarante disse. É o que um declarante diz salvaguardados todos os direitos que documentam a nobreza do Estado. Supondo que o sigilo exigido pela Ordem faça parta do conjunto de critérios que precisam de ser observados para salvaguardar a nobreza do Estado, a “verdade material” não pode consistir em negar esses critérios. Tem que ser aquilo que resulta disso. De novo, para os rápidos na leitura: não estou a dizer que esse sigilo seja boa coisa, nem que a Ordem tenha feito bem em exigir isso. Estou a dizer que o Juiz não pode acusar a Ordem de obstruir a justiça por ela querer salvaguardar algo que, no final das contas, protege a nobreza do Estado. Essa é a questão que ele devia discutir, ou pelo menos, que os vários analistas deviam reflectir. Só esse argumento é convincente.
A impaciência do Juiz com a Ordem – e os aplausos ruidosos que ele recebeu nas redes – são sintomáticos não só de lacunas no nosso ensino superior, mas também duma postura política que está por detrás da perversão sistemática das nossas instituições. O sector da justiça é notório neste aspecto. Os casos recentes de juízes sancionados por terem cometido repetidas infracções – aliados aos vários casos falados em surdina, ou não, de juízes e funcionários de tribunais que entram em esquemas com advogados e réus – não falam da falta de integridade das pessoas envolvidas. Falam dum sistema político (e de justiça) obcecado com a certeza a todo o custo e que, por isso, não vê nenhuma importância em investir nos procedimentos e procurar pela verdade que resulta da aplicação destes, e não por uma verdade transcendente. É difícil tirar o autoritarismo do nosso DNA.
Nada é mais perigoso para a convivência sã do que uma pessoa que não está preparada para contemplar a sua própria falibilidade. A forma como vejo o caso lá da BO abordado por algumas pessoas mostra isso claramente. Os mozes querem sangue a todo o custo, que se lixe a justiça!
N.B. No interesse duma discussão útil, caso haja interesse, peço a quem tiver opinião contrária que partilhe comigo o seu entendimento de “verdade” e como ele enforma a sua abordagem do caso, em particular, e da justiça dum modo geral.
In https://www.facebook.com/elisio.macamo
18.01.2022